Era um dos maiores receios das autoridades portuguesas e das associações de apoio à vítima: que com o isolamento social ditado pela declaração do estado de emergência e com as tensões inerentes ao confinamento, o número de crimes de violência doméstica disparasse.

Sabe-se agora, com a divulgação por parte do Ministério da Administração Interna (MAI) do relatório sobre a segunda aplicação do estado de emergência, se aconteceu, de facto, esse aumento não foi denunciado às autoridades. Tal como a criminalidade denunciada em geral caiu para mais de metade — entre 13 de março e 17 de abril deste ano, o número de ocorrências caiu 55% em relação ao mesmo período do ano passado —, também as queixas relativas a crimes de violência doméstica baixaram.

Não significa, ainda assim, que não sejam números preocupantes os que o documento esta terça-feira apresentado revela: de 13 de março a 17 de abril foram registados 1.105 crimes de violência doméstica e 61 pessoas foram detidas — no mesmo período de 2019 tinham sido 1.692 as queixas e 88 as detenções pelo mesmo motivo. Ao contrário do que aconteceu em algumas partes do mundo (na China, por exemplo, o número de queixas foi multiplicado por quatro, durante a quarentena), com a declaração do estado de emergência, em vez de subir, o número de queixas por violência doméstica caiu 34,7% em Portugal.

Esta redução de denúncias também não quer necessariamente dizer que o número efetivo de crimes tenha diminuído. Essa é aliás uma das preocupações das autoridades: que o confinamento doméstico com os agressores possa impossibilitar as vítimas de pedir ajuda. Por esse mesmo motivo, explica o mesmo relatório, a PSP tem estado a trabalhar com a Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, nomeadamente na promoção de formas alternativas ao telefone e ao 112 para dar o alerta.

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Além disso, foi incentivado o contacto com amigos e familiares e a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) pediu especial atenção aos vizinhos, que podiam servir de alerta. Tudo isso parece ter resultado: as denúncias feitas por terceiros, tenham sido eles familiares, amigos ou até vizinhos aumentaram em relação ao ano passado. Do total de 476 participações de violência doméstica feitas no segundo estado de emergência, 129 foram apresentadas “por terceiros” — em termos percentuais, são 26%, uma subida de cinco pontos em relação a 2019.

Algumas queixas chegaram também através do e-mail exclusivo criado para esse propósito: violenciadomestica@psp.pt. E só durante a vigência do segundo estado de emergência, entre os dias 3 e 17 de abril, 15 de um total de 476 participações de violência doméstica chegaram ao conhecimento das autoridades através desta caixa de entrada.

Avaliado apenas este período, a queda de participações foi um pouco menos expressiva; menos 29% em relação às mesmas duas semanas de 2019 — há um ano foram feitas 673 denúncias, e agora 476. Dá uma média de 32 queixas de violência doméstica por dia — nestes mesmos dias, no ano passado, a média era de 45 denúncias a cada 24 horas.

Os dados mostram ainda que a maior parte das vítimas (81.5%) são mulheres, a maior parte dos agressores (85%) são homens — como aconteceu também em 2019 e nos anos antes desse.

Álcool na estrada, furtos de oportunidade e por carteiristas — os crimes que mais caíram

Olhando para os dados da criminalidade geral, a queda foi vertiginosa: se entre 13 de março e 17 de abril de 2019 as forças policiais se viram a braços com 17.458 denúncias de crime e efetuaram 2.786 detenções; este ano, no mesmo período, tiveram de acorrer a 7.852 situações e detiveram 1.104. São diminuições de 55% e de 60,4%, respetivamente, que decorrerão do isolamento a que os cidadãos se viram forçados no esforço contra a propagação do novo coronavírus. E, para alguns tipos de crime, isso é ainda mais evidente.

Com discotecas, bares e até cafés encerrados por decreto presidencial, os crimes de condução com taxa de alcoolémia igual ou superior a 1,2 gr/l caíram 82,9% entre 13 de março e 17 de abril, em comparação com o ano passado. Se em 2019, nestas cinco semanas, foram detidas 1.007 pessoas com uma taxa de álcool criminosa no sangue, este ano, no mesmo espaço de tempo, foram apenas 172.

Sem turistas (ou sequer portugueses) nas ruas ou nos transportes públicos, os furtos por carteirista diminuíram 91,9% e o mesmo aconteceu com os “furtos por oportunidade”, que caíram 82,5% — também deixou de haver mochilas descuidadamente deixadas no chão ou carteiras ou telemóveis pousados em cima de mesas em esplanadas apinhadas.

A completar o top cinco dos crimes que mais desceram, o MAI destaca ainda a “ofensa à integridade física voluntária simples”, que baixou 67,2%, e o “furto em veículo motorizado”, que caiu 58%. No conjunto dos cinco, foram contabilizadas 1.383 ocorrências. O ano passado, no mesmo período do calendário, os mesmos crimes foram registados pelas autoridades policiais 5.408 vezes, o que representa, ainda assim, uma queda de 74,4%.

Crimes por desobediência e burlas por fraude bancária — os delitos em crescimento

Em contrapartida, alguns crimes dispararam com o confinamento e as sucessivas declarações de estado de alerta e de emergência. E o crescimento das burlas por fraude bancária, que já a 7 de abril a Direção Nacional da PSP tinha destacado, será um bom exemplo disso: na altura, o crescimento em relação ao ano anterior era de 67,4%; agora estacionou nos 67,6%, revela o relatório do MAI. Parte de um bolo maior, que é dos crimes contra o património em geral, que até registou uma diminuição de 16% neste tempo de pandemia, este tipo de burlas estão em destaque no documento — “incremento substancial” é a expressão utilizada.

Também em franco crescimento, mas neste caso porque as ações capazes de configurar crime foram subitamente alteradas com a entrada em vigor do estado de emergência, que deixou em suspenso uma série de direitos, liberdades e garantias, estão os crimes de desobediência — cresceram 94,3% entre 13 março e 17 de abril, em comparação com o ano passado.

Ainda do top cinco dos crimes que mais aumentaram constam os crípticos “outros roubos” (mais 114,3%) e “outros crimes de perigo comum” (20%); e a “resistência e coação sobre funcionário” (12,8%). No total dos cinco, foram registadas 616 ocorrências. Em 2019 tinham sido 373.