Na já habitual fila para se entrar no Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), em Lisboa, há agora um frente sala que diz a cada espectador que a máscara é para ficar colocada durante todo o espectáculo. Sim, senhor, assim será. Há marcas no chão vermelhas, aquela ideia das marcas de distância de segurança roubadas às autoestradas. E há fitas a delimitar zonas, espaços e lugares. Toda a parafernália de alertas — para o caso de uma pessoa se distrair — que relembram o momento pandémico em curso, desvirtuam o outrora limpo e lustroso átrio que antecede a entrada na Sala Garrett. Mas não há nada a fazer.

É com estes pensamentos divergentes que mostro o bilhete. Depois, subitamente, lembro-me que é melhor prevenir do que remediar. “Peço desculpa, posso só perguntar-lhe se é possível ir à casa de banho?”. “À sua esquerda”, respondem-me. O bom da máscara é que quando coramos não se nota, ou nota-se menos. Todo o percurso até aos lavabos fi-lo a vergastar o meu próprio cérebro: então agora iam-me impedir de ir aos sanitários? Bem sei que isto é uma pandemia, mas há limites.

Fiz o que tinha a fazer, subi as escadas, entrei na Sala Garrett e dirigi-me ao meu lugar. O público sentado com uma cadeira de intervalo assinalada com uma fita recordou-me que isto ia ser diferente. Pelo menos, não é qualquer pessoa que pode dizer que só tinha um corredor a separá-la do senhor Presidente da República. Infelizmente, estes tempos não são amigos da proximidade que uma marcelfie exigiria. Lamentável. Ao seu lado — com Pedro Mexia, conselheiro para a Cultura do professor Marcelo Rebelo de Sousa – estava a ministra da Cultura, Dr. Graça Fonseca. Lugar privilegiado, pensei.

Em palco já estava Tiago Rodrigues. O diretor artístico do TNDMII volta a apresentar “By Heart”, espectáculo que estreou em 2013, no Maria Matos Teatro Municipal, com as tais caixas da fruta e enorme coleção de livros imprescindíveis à concretização do dito cujo. De imediato, porque a memória tem destas coisas, tentei escavar aqui dentro à procura da pasta onde, eventualmente, teria guardado o 30.º soneto de William Shakespeare, já que esse é o objetivo do espectáculo. Em cena estão dez cadeiras, que serão ocupadas por dez elementos do público e “By Heart” só terminará quando estas souberem dizer o tal poema de cor. Eu já tinha sido uma destas dez pessoas, num ensaio de imprensa aquando da estreia. Está bem está. Nem um verso…

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Voltando ao meu lugar — sem nunca dele ter saído realmente — redobro o sentimento de estranheza aqui patente. Há um silêncio qualquer complicado. Um medo de ter aquela converseta habitual que sempre se tem antes de as luzes descerem. Atrás de mim alguém arrisca: “Aposto que metade das pessoas nesta sala já viram este espectáculo”. De facto, isso deixou-me a pensar: deve ser rara a pessoa que aqui veio porque não podia perder esta apresentação — sem qualquer desconsideração pela mesma. Tal como eu, quem aqui se deslocou quer saber acima de tudo como é voltar às salas com todas as medidas de restrição impostas pela Direção-Geral da Saúde e pelo Ministério da Cultura.

Uma coisa vos garanto: o calor é problemático. Senti, de imediato, que os deuses da meteorologia não se lembraram de mim — um ser com incontáveis problemas com o suor. Nem se lembraram de como os óculos podem embaciar. Ver este espectáculo tranformou-se numa tarefa muito trabalhosa.

No começo, Tiago Rodrigues agradece aos presentes. “Costumo começar este espectáculo a dizer: ‘obrigado por terem vindo’. Hoje queria começar por dizer: ‘obrigado mesmo por terem vindo’”. Era visível o entusiasmo, a agitação de um homem que voltou a poder partilhar ideias, a estar com o seu público, a abrir, no fundo as portas da sua casa. Mais ou menos como disse aos dez corajosos voluntários necessários para se cumprir este espectáculo: “Sintam-se em casa, não na nossa casa porque certamente já estão fartos dela”. Se “By Heart” sempre teve uma dose de improviso, hoje, grande parte desses momentos são referências à Covid-19 ou ao forçado afastamento que esta nos provocou.

Como aquele em que — durante a aprendizagem dos primeiros quatro versos do soneto, quando as dez pessoas em cena tentam, em coro, não se enganar — Tiago Rodrigues admite que o problema das máscaras é que o impede de saber qual dos voluntários está a dizer mal. Problema para ele. Para quem lá está em cima maravilha.

Mas é lógico que “By Heart” não é só decorar um poema de Shakespeare. Não é que seja coisa pouca, porque claramente não é, digo-vos porque já passei por isso. “By Heart” é sobre o poder da memória, sobre a força e o legado da oralidade, sobretudo quando utilizada como resistência face aos inúmeros regimes totalitários e assassinos que reinaram durante o século XX.

A dada altura, Tiago Rodrigues conta uma adivinha — mania que a sua avó Cândida muito tinha. Várias pessoas do público, entre elas o senhor Presidente da República, respondem. Tiago Rodrigues vai por cima e contrapõe: “A menos que sejam o Aquilino Ribeiro, caladinhos, se fazem favor”. Viva a cena, esse sítio onde é permitido mandar calar o Presidente. E Marcelo Rebelo de Sousa ainda se riu depois. Uma bênção.

Este seria sempre um outro “By Heart”, ainda que continue a vir do coração de Tiago Rodrigues. A distância entre as cadeiras — quando comparada com outras reposições — é bastante maior. É uma meia-lua mais fragmentada. Os versos são de compreensão mais complicada, o que não é de estranhar, uma vez que as máscaras têm este poder de comer algumas letras. E o gel desinfetante passou a ser um adereço do cenário, até porque o encenador passa alguns livros aos dez elementos e pede-lhe que os segurem. Como era em spray, tem o poder de criar gotículas no ar que posso ver percorrer o ar e cair — é possível que isto já seja eu a criar mais uma ficção muito minha, padeço desse mal. Não menos especial e propositadamente particular, é uma “hóstia” com o desejado soneto inscrito. Ao que parece, foram confecionadas numa pastelaria da Costa da Caparica e não proporcionam uma grande experiência gastronómica, ao ponto de se colarem ao céu da boca. Mas estas dez pessoas já podem colocar no currículo que William Shakespeare lhes corre nas veias. Essa é que é essa.

Resumindo, foi possível ir ao teatro. Foi possível esquecer-me do que vivemos e ser engolido pela ficção. Como se costuma dizer: viajei. Embora, admito, gosto sempre de viajar mais à fresca. Aliás, acho que é por isso que nunca fui para um destino exótico passar férias. Mas enfim, chorar não adianta, é preciso usar máscara e é preciso ter toalhitas húmidas para baixar a temperatura corporal. E ter cuidado a levantar a máscara quando a sede dá sinal. Há outro dado: quando o espectáculo acaba só se abandona a cadeira depois de ordem da equipa do TNDMII. Ou seja: é bom que tenha ido à casa de banho.