A realizadora portuguesa Ana Rocha de Sousa foi distinguida neste sábado com o prémio Leão do Futuro – Luigi De Laurentiis e o prémio especial do júri da secção competitiva Horizontes no Festival de Cinema de Veneza por uma longa-metragem sobre as adoções forçadas no Reino Unido. O filme teve exibição em Veneza na última terça. Na secção Horizontes estava uma outra realizadora portuguesa, Laura Carreira, com a curta-metragem The Shift.

Já na sexta-feira Ana Rocha de Sousa tinha recebido dois galardões: o Prémio Bisato d’Oro para Melhor Realização, atribuído por um júri de críticos independentes, e ainda o prémio Sorriso Diverso Venezia, pela “abordagem às questões sociais” (ex aequo nesta categoria com Selva Trágica, de Yulene Olaizola). No ocasião, disse considerar as distinções “muito importantes para credibilizar o filme, porque o tema é polémico e é muito fácil pô-lo em causa”.

Ao telefone com o Observador a partir de Veneza, a realizadora, de 41 anos — que é também atriz e se tornou conhecida como Ana Rocha ao entrar na série Riscos, que a RTP exibiu em 1997, ou na telenovela Jura, da SIC — mostrava-se supreendida com os prémios atribuídos na sexta-feira e dizia ter expectativas reforçadas para este sábado, quando o Festival de Veneza divulgasse os vencedores nas principais categorias oficiais. “Se dissesse que não tenho, estaria a mentir”, indicou na sexta. Tinha razões para alimentar a esperança, percebe-se agora.

Listen, assim se chama o filme quatro vezes galardoado, tem duração de 73 minutos e marca a estreia de Ana Rocha de Sousa nas longas-metragens, depois de assinar quatro curtas entre 2009 e 2013. É um coprodução luso-britânica, da Bando à Parte e da Pinball London, falada em português e inglês. Os atores principais são Lúcia Moniz, Ruben Garcia e Sophia Myles.

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Lúcia Moniz é uma das protagonistas de “Listen”

O filme baseia-se em factos reais e aborda o drama de um casal português emigrado em Londres, a quem os serviços sociais retiraram os filhos por alegados maus tratos, retratando a luta pela união da família, informou a distribuidora NOS Audiovisuais, que no próximo ano deverá estrear o filme nas salas portuguesas sob o título Ouve-me, embora a data concreta não seja ainda conhecida.

“A ideia do filme foi sempre a de mostrar da forma mais objetiva e honesta possível a realidade das adoções forçadas”, disse Ana Rocha de Sousa na sexta-feira. “As pessoas precisam de saber que isto acontece e que é mesmo assim que funciona. Não estou só a contar uma história de um ponto de vista artístico, estou a retratar numa perspetiva social a realidade das adoções forçadas. Quero passar uma mensagem”, sublinhou.

A realizadora espera até poder “provocar uma mudança” legal no Reino Unido

O assunto tem estado na agenda nos últimos anos e mereceu várias reportagens e comentários públicos, sobretudo porque são muitos os casais portugueses emigrados em Inglaterra a quem os filhos menores têm sido retirados pelos serviços sociais e dados para adoção, em processos considerados agressivos e injustos.

Ana Rocha de Sousa está convencida de que a divulgação do filme num certame com a visibilidade do Festival de Veneza serve para alertar a opinião pública europeia, “porque há muitos países, incluindo Itália, que desconhecem este problema”. Espera até poder “provocar uma mudança” legal no Reino Unido. “Tenho muita esperança nesse sentido. Penso que o sistema tem a melhor das intenções ao tentar proteger as crianças. O problema é que o princípio da prevenção do risco, que é aquele que vigora nestes casos no Reino Unido, é muito complicado. Não se consegue prever o que são os danos emocionais futuros numa criança. Separar crianças da família com base em definições vagas como esta é absolutamente errado, do meu ponto de vista, porque gera inúmeros erros de avaliação.”

Filme português “Listen” recebe prémio Bisato d’Oro no festival de Veneza

Ter sido mãe e ter vivido no Reino Unido determinou o interesse da realizadora pelo assunto. Ao ler uma notícia, em inícios de 2016, sobre uma mãe portuguesa em Inglaterra que foi separada do seu filho, Ana Rocha de Sousa decidiu investigar. Foi antes do começarem a surgir inúmeros casos relatados na comunicação social.

“A minha reação na altura foi de espanto, como será a de muitas pessoas que desconheçam esta realidade e agora vejam o filme. Pensei que não era possível, que aquilo não acontecia, que não deveria ser exatamente assim. Depois de investigar, percebi que é mesmo assim. Há casos extremos e fora da lei, mas não é desses que falo no filme. O filme trata de uma situação dentro do sistema legal e que pode acontecer a qualquer pessoa.”

“O cinema, por vezes, tem de abraçar uma perspetiva jornalística”

A família portuguesa retratada e o enredo de Listen não são reais, mas compósitos. A realizadora fez uma primeira versão do guião, subsidiada pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual, e mais tarde adaptou-o com o apoio de Paula Vaccaro e Aaron Brookner, da Pinball London. “A pesquisa foi implacável, teria de ser, perante um tema destas”, disse.

[veja uma cena do filme:]

Ana Rocha de Sousa já está a escrever a segunda longa-metragem e ao mesmo tempo prepara um documentário, mas não quis entrar em pormenores. Sobre se o cinema de ficção pode ser mais eficaz a retratar a realidade do que o cinema documental, ou até o jornalismo, disse que “depende da perspetiva de quem conta, mas todas as perspetivas têm mérito”.

“Há documentários fortíssimos e jornalismo fortíssimo. O cinema, por vezes, tem de abraçar uma perspetiva jornalística. Neste sentido, o meu filme, não sendo obviamente um trabalho jornalístico, tem uma base muito importante dessa linguagem. O realismo era essencial e está lá”, explicou. A realizadora vive em Lisboa e regressa no domingo.

Notícia atualizada às 20h42 de 12 de setembro com todos os prémios conquistados por Ana Rocha de Sousa em Veneza.