Como os franceses eram a nacionalidade dominante entre os participantes na Primeira Cruzada e o francês se tornou na língua prevalecente nos territórios conquistados pelos cruzados na Terra Santa e no Mediterrâneo Oriental, os povos islâmicos destas regiões passaram a designar todos os europeus por farangi ou firangi (isto é “francos”) e a Europa por Frangistan (ou seja, “terra dos francos”). A designação não abrangia os cristãos ortodoxos do Mediterrâneo Oriental, que o mundo islâmico continuou a designar por rûm, isto é, “romanos”, por habitarem no que fora em tempos o Império Romano do Oriente (e que, à data, assim era ainda denominado pelos próprios).

A nomenclatura é equívoca, uma vez que, do ponto de vista religioso, os farangi, isto é, os cristãos da Europa Ocidental, deviam obediência a Roma, enquanto os rûm tinham a sua sede espiritual em Constantinopla (Bizâncio). Seja como for, a associação do termo farangi aos europeus ocidentais, indiferenciadamente, espalhou-se, com algumas mutações, pelo mundo oriental e quando os portugueses chegaram à China no século XVI, foram metidos no mesmo saco e identificados como “folangji” (com o som “l”, a substituir o “r”, que não fazia parte da fonética chinesa).

Renaud García-Fons & Claire Antonini: “Farangi: Du Baroque à l’Orient” (E-motive)

O contrabaixista francês (de ascendência catalã) Renaud García-Fons tem promovido o intercâmbio musical entre Ocidente-Oriente desde que em 1992 gravou o seu primeiro álbum, Légendes, e sente-se tão em casa no jazz, como no flamenco ou na música persa. Numa discografia em que tanto se apresenta a solo, desdobrando o seu contrabaixo por múltiplas faixas (como em Légendes), como recorre a uma formação alargada (é o caso de Oriental bass, Navigatore ou Méditerranées), García-Fons criou uma fascinante síntese de tradições musicais, que nada tem a ver com o superficial exotismo de bilhete-postal de que enferma tanto projecto de “fusão de culturas”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No álbum Farangi: Du Baroque à l’Orient, García-Fons junta a esta liberdade de movimentação no espaço que vai da Ibéria ao Irão, a deslocação no tempo, utilizando como inspiração para algumas das suas 19 concisas faixas (todas de sua autoria) composições dos alaúdistas Giovanni Girolamo Kapsberger (c.1580-1651) e Ennemond Gaultier (c.1575-1651), bem como danças barrocas, como a passacaille, a pavane ou a chaconne, que convivem, sem atritos, com ritmos e estruturas da música tradicional curda, turca e persa.

[Apresentação do álbum Farangi:]

Para este projecto de cruzamento de mundos e eras, García-Fons encontrou a parceira perfeita em Claire Antonini, uma alaúdista com formação clássica, que, por sua conta, já gravou álbuns dedicados à música de Bach ou aos alaúdistas franceses do século XVII e faz parte do Ensemble Artaserse (que costuma acompanhar o contratenor Philippe Jaroussky) e de outras conceituadas formações de música antiga, como Le Concert d’Astrée ou Les Arts Florissants, e que também tem sido sua cúmplice assídua, nomeadamente nos álbuns Oriental bass, Navigatore, Entremondo, Méditerranées e Silk moon.

[“Capona”, a partir de uma peça do compositor barroco Giovanni Girolamo Kapsberger:]

García-Fons e Antonini já trabalham em duo há alguns anos, mas este é o seu primeiro álbum, ainda que na maior parte das faixas se ouçam mais do que dois instrumentos, pois o multitracking permite que García-Fons também toque percussão e multiplique o seu contrabaixo por dois ou por três – e quem conhece este prodigioso músico sabe que ele é capaz de fazer o seu contrabaixo de cinco cordas soar também como violoncelo, violino, oud (o alaúde do mundo islâmico), guimbri (uma espécie de oud baixo), rebab (instrumento de cordas friccionadas do Norte de África e Próximo Oriente), kemanche (instrumento de cordas friccionadas das tradições persa, azeri e curda), sarangi (instrumento indiano de cordas friccionadas) ou ney (flauta do Médio Oriente), o que confere uma invulgar riqueza tímbrica a um disco com apenas dois instrumentistas.

[“Nove alla turca” é descrita por García-Fons como uma “fantasia barroca sobre ritmo tradicional turco a nove tempos”:]

Contribuindo para a variedade tímbrica, Antonini desdobra-se por três instrumentos: alaúde barroco de 13 ordens, alaúde soprano e tiorba (uma variante de braço extra-longo do alaúde). Embora, na sua origem, o contrabaixo e o alaúde tenham sido concebidos para desempenhar um discreto papel de acompanhamento, Farangi demonstra (se tal fosse ainda necessário) que são capazes de assumir a responsabilidade de serem as únicas estrelas em palco. Em “Dirouz”, o contrabaixo apresenta-se sem companhia nem overdubs, recorrendo à peculiar técnica que García-Fons designa por “pizz di arco”, que faz ressaltar o arco contra as cordas num efeito percussivo encantatório. Antonini também tem uma faixa a solo, “Toledo del Greco”, onde se fundem, em 1’42, séculos de tradição ibérica de música para cordas dedilhadas.

[“Dirouz”:]

Num álbum de nível homogéneo, merece destaque “Légende persanne”, inspirada em modelos da tradição musical persa, peça de uma hipnótica e inconsolável melancolia, cujo poder para induzir um aperto na garganta afectará indistintamente portugueses, gregos, turcos ou iranianos.

Numa época em que tantos políticos e académicos gastam tempo com declarações bem-intencionadas mas ocas sobre “diálogo de civilizações” e “multiculturalismo”, é bom saber que há artistas que sabem pôr em prática estas abstracções.

[“Légende persanne”:]