Há bastantes “revenge movies”, ou “filmes de vingança”, protagonizados por mulheres, e alguns deles bastante bons, como “A Noiva Estava de Luto”, de François Truffaut (1968), “Vingança de uma Mulher”, de Abel Ferrara (1981), os dois “Kill Bill”, de Quentin Tarantino (2004/5), “Vingança Planeada”, de Chan-wook Park (2005) ou “A Estranha em Mim”, de Neil Jordan (2007). Todos seguem a mesma matriz: a heroína, à qual foi feito mal, e/ou a familiares muito próximos, vinga-se metódica e implacavelmente dos culpados, quase sempre homens, embora possa também haver mulheres na equação (ver os “Kill Bill”). Uma vez eliminados os prevaricadores, às vezes com rebates de consciência ou dúvidas morais por parte da vingadora pelo meio, a senda de violência cessa.

“Uma Miúda com Potencial”, de Emerald Fennell, quebra com este modelo e esta tradição, ao estar enformado por um feroz e vitriólico sentimento anti-homem, característico da era #MeToo. Carey Mulligan (aos 35 anos, claramente velha de mais para o papel de uma personagem uns bons 10 anos mais nova ) interpreta Cassandra, uma rapariga que abandonou o curso de Medicina, traumatizada pela morte violenta da sua melhor amiga, na sequência de uma festa em que bebeu demais e foi vítima de abuso sexual por um colega, perante vários outros que nada fizeram, e ainda incitaram o violador. Este nunca foi detido e punido, já que as autoridades universitárias preferiram abafar o caso.

[Veja o “trailer” de “Uma Miúda com Potencial”:]

Em vez de procurar — ou pagar a um detetive para o fazer — o culpado e os que assistiram ao crime sem agir, Cassandra anda à noite pelos bares e discotecas sozinha, a fingir que está embriagada e vulnerável, deixando-se apanhar por homens que a julgam fácil e indefesa, e que depois aterroriza (o filme não deixa bem claro se chega a agredir e matar alguns, mas ela tem um caderninho cheio de marcas, umas a negro, outras a vermelho). Tirando o muito secundário pai de Cassandra e o advogado choramingas e arrependido de ter feito carreira a defender abusadores sexuais, não há em “Uma Miúda com Potencial” uma única personagem masculina que se aproveite. A premissa do filme é simples: todos os homens são refinados canalhas e potenciais violadores, e por isso têm aqui o que merecem.

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[Veja uma entrevista com Carey Mulligan:]

No início da fita, numa sequência em que Cassandra regressa a pé para casa de manhã, após ter “castigado” um dos seus alvos, ouve-se em fundo uma versão de “It’s Raining Men” subvertida para coincidir com o espírito que anima a história. “Uma Miúda com Potencial” é um filme de uma misandria primária e grosseira, ainda mais do que os trolhas que do outro lado da rua assobiam e atiram piropos a Cassandra. Que também não é meiga para com as mulheres que considera serem fracas e submissas ao “inimigo” masculino, e por isso estão mesmo a pedir ser castigadas. É o caso da antiga colega que sabe coisas sobre a violação da amiga, e que ela embebeda num almoço num hotel e depois pune com desprezo, atirando-a para os braços de um prostituto.   

[Veja uma cena do filme:]

https://youtu.be/alVabfdfNNo

Cassandra é claramente uma sociopata, mas é ela que grita esta acusação aos homens que caça. Para Emerald Fennell, que também escreveu o argumento do filme (e ganhou um Óscar por ele), não há problema em ser-se sociopata, desde que se tenha o género e a causa certos e o inimigo correto. Depois de uma surpresa na história que se vê chegar à distância, e do confronto falsamente anticlimático de Cassandra com o violador (arruinado pela desastrada interpretação de Chris Lowell no dito), “Uma Miúda com Potencial” tem uma conclusão sardónica mas convencionalmente reconfortante, e que também já se adivinhava. Pelo menos, não teremos de sofrer uma parte II.