Vítor Constâncio repetiu várias vezes a ideia, depois de sucessivamente confrontado com a questão pelos deputados. O antigo governador do Banco de Portugal lamenta não ter sido avisado sobre o aumento da exposição do Banco Espírito Santo (BES) à filial angolana BESA, que se verificou ainda no tempo em que esteve à frente da entidade de supervisão. Mas, ao mesmo tempo, também disse compreender porque é que não foi informado pelos serviços dessa situação. E admitiu não ter a certeza de que teria feito alguma coisa.

Constâncio: “Assumo as minhas responsabilidades gerais, mas a perguntas concretas respondo com a verdade

Angola. O lamento do ex-governador e o travão que o sucessor não puxou

A afirmação que mais marcou a sua audição na comissão parlamentar de inquérito às perdas do Novo Banco terá sido dirigida (não de forma expressa) ao governador que se seguiu. Isto porque, apesar de o aumento de exposição a Angola (com empréstimos da casa-mãe a suportar o crescimento do BESA) se ter verificado ainda no seu mandato — Constâncio saiu em maio de 2010 — o risco era nessa altura relativamente limitado. O BESA comprava dívida pública angolana, um negócio em que vários bancos portugueses participavam.

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Só que depois, já com Carlos Costa no cargo do governador, a exposição disparou através da concessão de crédito a empresas privadas a partir de 2011. Passou-se de 3,7 mil milhões de euros para 6,1 mil milhões em 2013.

Foi esta “explosão” na carteira de crédito a entidades privadas angolanas que deu origem ao problema do malparado logo em 2013 — com um buraco de mais 5 mil milhões de dólares que levou Salgado a pedir a garantia do Estado de Angola para cobrir o mais que certo incumprimento. Um crescimento exponencial, que segundo afirmou Constâncio ao deputado comunista Duarte Alves, deveria ter sido travado. Ainda que o antigo governador não saiba se o sucessor foi informado pelos serviços para esta situação (que era pública e publicada em relatórios e contas do BES e do BESA).

Deputado comunista arrancou audição confrontado com incumprimento do BES em 2008 apontado no relatório Costa Pinto

Angola acabou por ser o único “mea culpa”, ainda assim relativo, que Constâncio deixou durante esta audição. O antigo governador recusou a tese (defendida no relatório Costa Pinto) de que a supervisão foi pouco assertiva face ao BES, nomeadamente nas medidas para travar a exposição do banco ao grupo, e de que ignorou a falta de informação e os sinais de que o GES não só dependia totalmente do BES, como dava prejuízos antes da crise financeira de 2008.

O “conforto” do FMI e a responsabilidade geral, mas nem sempre concreta do ex-governador

Quando acusado por João Cotrim de Figueiredo, da Iniciativa Liberal, de “nunca assumir responsabilidades” — com base nas respostas dadas por escrito em 2015, em que remetia para o que os serviços lhe tinham dito — Constâncio rejeitou. “Ao contrário do que disse, assumo as minhas responsabilidades gerais. Mas a perguntas concretas respondo com a verdade“. E a supervisão não estava na tutela do então governador, que não tinha conhecimento de todas as decisões desta área.

De resto, e tirando um episódio mais ou menos temporário atribuído à crise de 2008, Constâncio não foi alertado para nenhum problema significativo no BES durante o seu tempo de Banco de Portugal. Repetiu várias vezes o “conforto” dado pelos auditores, agências de rating sobre a solidez do grupo — recordando qual era o contexto pré-crise financeira — e uma avaliação do Fundo Monetário Internacional de 2006 à estabilidade financeira da banca portuguesa, a qual concluiu que “a supervisão era ativa, profissional e bem organizada”.

Quanto à dívida angolana era um bom negócio para os bancos na altura, até porque Angola pagava juros altos e cumpria. Por outro lado, o Banco de Portugal não sabia que o Banco Nacional de Angola comprou dívida de curto prazo do GES quando o grupo estava sob pressão para desviar a torneira do crédito do banco para outros investidores. Esta é uma das “descobertas” do relatório Costa Pinto sobre a atuação do Banco de Portugal no BES, mas os deputados focaram o essencial das perguntas nas críticas à gestão do supervisor nos anos em que Constâncio ainda lá estava e o tema central não foi Angola, mas sim o GES.

Supervisor nada fez para limitar exposição ao GES? Banco de Portugal foi além da lei e usou persuasão moral

Vitor Constâncio foi confrontado com as ultrapassagens sucessivas pelo BES (e da holding financeira Espírito Santo Financial Group) do limite dos grandes riscos para a exposição do banco à área não financeira — e como isso mostrava que algo de podre havia no reino de Ricardo Salgado. O ex-governador refugiou-se no quadro legal que dava ao BES o direito de o fazer desde que deduzisse o excesso de exposição (empréstimos do banco ao grupo) aos fundos próprios. Só que houve um ano — 2008 — em que essa dedução automática não foi feita, porque se o tivesse sido, o banco ficaria com um rácio de solvabilidade abaixo do mínimo de 8%.

Vítor Constâncio lembra que 2008 era um ano de crise, o que levou o GES (com negócios no turismo e imobiliário) a recorrer a mais fundos do BES, e desvaloriza esse incumprimento — que, aliás, não aconteceu porque a lei não permitia que a dedução de fundos próprios comprometesse o rácio mínimo de 8%. O supervisor deu tempo ao banco e em dois meses a situação estava corrigida, sublinhou.

Cecília Meireles do CDS acusou Banco de Portugal de não ter feito nada perante risco de contágio do banco pelo GES. Constâncio diz que não é verdade

Para Cecília Meireles é “difícil compreender como este problema do excesso de exposição e de dependência do GES, que é do absoluto conhecimento do Banco de Portugal. nunca se resolve” e mais tarde (com Carlos Costa) alastra aos fundos de investimento geridos pelo BES e ao papel comercial do GES vendido aos clientes do BES. Quando os próprios serviços do BdP alertaram no tempo de Constâncio para a grande fragilidade e risco e contágio do banco pelo grupo. “No seu mandato nunca exigiu nada”. Foi um dos poucos momentos em que Constâncio elevou o tom. “Exigiu sim, em 2009. Não pode ignorar”.

É a referência ao plano de redução da exposição do banco ao grupo que o Banco de Portugal pediu, numa carta enviada ao BES em 2009, para ser implementado até 2012 — depois do excesso de financiamento do banco ao GES ter posto em causa os rácios de solvabilidade. Constâncio defende que o Banco de Portugal “foi além da lei” com esta iniciativa e que usou de “persuasão moral” sobre o banco que cumpriu.

Mariana Mortágua insiste que bastava ao Banco de Portugal “juntar as peças todas” para compreender que a atividade não financeira do grupo dava prejuízos ainda antes da crise de 2008, citando um documento do supervisor de maio desse ano. O BdP sabia que 75% do financiamento do Grupo Espírito Santo dependia do BES e que as empresas tinham prejuízo em 2007. E se não tinha mais informação foi porque o grupo recusou enviar as contas consolidadas. A consolidação revelaria mais cedo o buraco nas contas da Espírito Santo Internacional, que só foi detetado em 2013.

Numa audição morna, e muito mais curta do que última passagem de Vítor Constâncio pelo Parlamento (na comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos, em 2019), o também ex-vice-governador do Banco Central Europeu revelou alguns detalhes dos últimos dias do BES, no verão de 2014, em resposta a Hugo Carneiro, do PSD.

Constâncio afirma que o BCE até esperou “muito tempo” antes de retirar o estatuto de contraparte ao banco porque o Banco de Portugal foi argumentando que ainda havia folga de capital, apesar dos números preocupantes já indicados pela auditora do BES à data, a KPMG. No entanto, quando no dia 30 de julho foram anunciados os prejuízos semestrais, “acabou tudo”. E, apesar de existirem, em teoria, outras alternativas — a assistência financeira de emergência do Banco de Portugal e a recapitalização pública ou privada — estas não se concretizaram, deixando apenas a alternativa menos má —  a resolução, ainda assim melhor do que a liquidação.