Até há pouco tempo, não fazia ideia sobre quem era Rick Beato e mesmo depois de descobrir Rick Beato não sabia que Rick Beato se chamava Rick Beato, o que é uma pena porque Rick Beato é um nome muito engraçado, razão pela qual o estou a repetir tantas vezes. Não sei se alguma vez foram ao canal de Youtube de Rick Beato, um guitarrista e compositor norte-americano que agora também se dedica a explicar as razões da grandeza de uma grande canção, o que – mesmo para quem não é músico ou crítico – toca em todos os nervos e luzinhas internas das pessoas curiosas.

Como exemplo, aqui encontram o episódio número 91 de “What Makes This Song Great”, dedicado a “Amelia”, de Joni Mitchell:

“Amelia” encontra-se em Hejira, disco profundamente marcado pelo jazz, o que significa que a progressão de acordes que Beato explica pacientemente é marcada por esse género, que Mitchell abordou de forma iconoclasta. Está, portanto, longe da música que Mitchell produziu em Blue, que esta terça-feira, 22 de junho, faz 50 anos – e que 50 anos depois ainda mantém todo o seu poder, toda a sua fragilidade comovente.

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Mas aquilo que Beato destaca em “Amelia” – a melodia que não se sabe onde vai parar, as harmonias, os pequenos vibratos, as notas prolongadas onde não se esperava um prolongamento de nota, os acordes em afinações incomuns – tudo isso já fazia parte de Blue, mesmo sendo Blue, essencialmente, um disco folk. Porque Mitchell nunca fez as coisas como a maior parte dos músicos fez – nunca se limitou a imitar a folk convencional, nunca cantou de forma convencional, nunca sequer se comportou como uma mulher convencional do seu tempo.

As canções, o silêncio e o desgosto: aos 75 anos, quem esqueceu Joni Mitchell?

Em “Rolling Thunder Review”, o faux documentário que Martin Scorsese criou da digressão com o mesmo nome, organizada por Bob Dylan e partilhada com um sem número de estrelas da época, há um momento em que os homens fazem um círculo para ouvir alguém tocar uma canção que a protagonista da cena diz ter acabado de inventar: é Joni Mitchell e a canção é a extraordinária “Coyote” e eles estão todos embevecidos – da canção, da autora – como sempre aconteceu com Mitchell.

[Joni Mitchell no documentário “Rolling Thunder Revue”, de Martin Scorsese:]

Muito antes de Joni Mitchell ter abandonado os estudos para se tornar música e de ter dado a sua filha para adoção, já as mulheres da sua família demonstravam rebeldia: uma das suas avós partiu uma porta da quinta onde vivia à conta da sua frustração por não poder ser poeta e música; a outra, conta Mitchell, chorou pela última vez aos 14 anos, quando se apercebeu que nunca lhe comprariam um piano. Mitchell estava determinada a não ser como as avós: iria fazer o que quisesse, desse por onde desse.

Quando Blue foi editado, em 1971, Mitchell já tinha 28 anos e bem vividos: sabia o que era viver na pobreza, conhecia a dor de perder uma filha, o que eram relacionamentos falhados, ser mulher numa indústria de homens – e também já tinha atrás de si uma obra ou, pelo menos, três discos: Song to a Seagull (de 1968), Clouds (de 1969) e Ladies of the Canyon (de 1970) mostravam uma mulher cada vez mais confiante na escrita de canções e cada vez mais capaz de fugir da folk e a incorporar com outros elementos. E também demonstravam que apesar da sua imensa curiosidade (ou por causa dela) Mitchell era capaz de escrever canções imaculadas, como “Both sides now” (dedicada à sua filha).

Blue, contudo, é outra coisa: o equilíbrio perfeito entre folk e experimentação, entre fragilidade e a imensa força de liricamente dar conta dessa fragilidade, o equilíbrio perfeito entre melodia e os famosos “chords of inquiry” que ela preferia, entre angústia e crença no futuro. Em Blue entra tudo: a tristeza pelo falhanço das relações amorosas, a política social dos EUA, o papel de uma mulher (ou como é que uma mulher pode libertar-se dos papéis que lhe são atribuídos à nascença), as drogas e o álcool, a maternidade, a dificuldade em perceber se se quer ser independente ou encontrar um homem com quem partilhar a vida – e tudo isto com uma maturidade assinalável para quem tinha apenas 28 anos.

[ouça “Blue” na íntegra através do Spotify:]

Aquilo a que Mitchell chama “chords of inquiry” desempenha um papel fundamental no disco – fundamentalmente são afinações abertas que permitem a Mitchell criar simultaneamente ritmo e melodia na guitarra mas que têm quase sempre algo de angustiante, como se colocassem uma questão embaraçosa. Podemos ouvi-los nas descidas do piano de “My old man”, podemos ouvi-los logo na extraordinária faixa de abertura, “All I want” – isto não é a tradicional melancolia da folk, há aqui algo de mais irrequieto, algo que não consegue ficar no mesmo lugar muito tempo, como uma criança que sofresse de défice de atenção numa sala cheia de brinquedos.

A letra de “All I want”, escrita para Leonard Cohen, com quem Mitchell teve um breve caso, reflete de forma comovente o redemoinho interior de uma mulher consciente numa encruzilhada da História:

“I am on a lonely road and
I am traveling, traveling, traveling, traveling
Looking for something, what can it be
Oh I hate you some, I hate you some, I love you some

Oh I love you when I forget about me”

Assim canta Mitchell, antes de virar a canção e a transformar de simples canção de amor em algo maior:

“I wanna be strong I wanna laugh along
I wanna belong to the living
Alive, alive, I want to get up and jive
I want to wreck my stockings in some jukebox dive”

Mais à frente, a relação amorosa é apresentada como tela onde se evocam os papéis tradicionais da mulher versus a sua necessidade de libertação:

“I am on a lonely road and I am traveling
Looking for the key to set me free
Oh the jealousy
The greed is the unraveling it’s the unraveling
And it undoes all the joy that could be
I wanna fun, I wanna shine like the sun
I wanna be the one that you want to see
I wanna knit you a sweater
Wanna write you a love letter
I wanna make you feel better”

[“All I Want”:]

As contradições são propositadas: Mitchell está numa lonely road à procura da chave que a liberte (eventualmente do seu papel de mulher) mas ao mesmo tempo quer fazer uma camisola para o seu amor (que eventualmente já terá partido) enquanto pondera nos malefícios do ciúme.

Blue será assim até ao fim: uma série de contradições internas com um pano de fundo histórico delimitado, mas que ultrapassa esse período e ainda hoje se mantém premente (talvez mais que nunca). Em fundo, os tais acordes inquisitórios que nos deixam sempre com um aperto no peito, muito por força das melodias da extraordinária voz de Mitchell, cujas ascensões, 50 anos depois e mesmo para quem já ouviu Blue centenas de vezes, ainda são de cortar  a respiração.

Ao contrário do que a capa e a sua reputação indicam, Blue não é um disco de melancolia sufocante (pelo menos da estirpe de um Songs of Love and Hate, de Cohen) e basta ouvir “Carey”, com as suas percussões acentuadas e o seu ritmo gingão, para nos apercebermos disto. O que não é o mesmo que dizer que não haja uma sombra melancólica a banhar Blue, como é notório na faixa homónima ao disco.

[“Blue”:]

Acima de tudo, Blue é um disco de crescimento, de quem já se sabe adulto, mas ainda não encontrou uma almofada para o seu pescoço e ainda sente dores ao acordar e não tem vergonha de o dizer – e um disco que não tem vergonha de, na sua ânsia de espatifar o que é suposto fazer-se ou não, dar cabo das estruturas habituais da folk, logo à partida porque usa abundantemente do piano, um instrumento pouco apropriado a contemplações pastorais, mas também porque estas melodias parecem imprevisíveis, cheias de curvas e contra-curvas, subidas e descidas.

Essas marcas acentuariam-se mais tarde: em For the Roses (1972), Court and Spark (1974), The Hissing of Summer Lawns (1975) e Hejira (1976) Mitchell tornar-se-ia progressivamente mais aventureira, menos atreita ao registo da canção tradicional, mais próxima do jazz e mais capaz de incorporar instrumentos que não fazem parte do cânone nem da folk nem do jazz, criando um género só seu.

50 anos depois, os acordes de desassossego de Joni Mitchell ainda nos comovem e, ao mesmo tempo, trazem a estranha e inquieta alegria que só encontramos nessa libertação que é a ausência de respostas.