Até aos 55 minutos de jogo, também por influência daquele que foi o golo mais madrugador de sempre em finais do Campeonato Europa por Luke Shaw, a Inglaterra não só estava na frente como se mostrava confortável com o desenrolar do encontro. Era preciso mexer, era preciso mudar. Mais uma vez, apareceu o homem que mexeu na Itália e que mudou o paradigma do futebol na squadra azzurra, Roberto Mancini: retirou Immobile e Barella de campo, lançou Cristante e Berardi, alinhou uma defesa à três lançando Emerson como ala, alterou o rumo do jogo, empatou. As grandes penalidades foram depois tudo menos uma lotaria mas premiaram sobretudo aquele que mais soube ser audaz quando agarrou numa equipa destruída por falhar a qualificação para o Mundial de 2018 e começou há quase três anos uma série de 34 partidas consecutivas sem uma única derrota.

Os habituais titulares da Itália são uma constelação de estrelas que foi capaz de se transformar numa verdadeira equipa. Os suplentes são uma série de opções em alguns casos até mais novos ou de clubes menos mediáticos que só querem ajudar os companheiros. Depois, há ali um grupo de craques que hoje veste fato mas que simboliza algumas das melhores gerações de sempre dos transalpinos: Mancini, Evani, Lombardo, Gianluca Vialli, Nuciari, Gabriele Oriali, Salsano, Daniele de Rossi. Todos antigos jogadores, todos ex-internacionais, todos competentes dentro e fora dos relvados numa vida dedicada ao futebol. Entre eles, dois têm uma relação como mais ninguém tem no seio dos novos campeões europeus. E ficaram como grande imagem final do Europeu.

Mancini e Vialli constituem uma das amizades mais improváveis mas talvez mais naturais que existe no futebol transalpino. Os “gemelli del gol”, como ficaram conhecidos quando faziam dupla no ataque, jogaram juntos oito anos na Sampdória. Foram campeões (1991), ganharam três Taças de Itália (1985, 1988 e 1989), conseguiram uma Supertaça (1991), conquistaram a Taça dos Vencedores das Taças (1990), chegaram ainda a uma final da Taça dos Campeões Europeus perdida frente ao Barcelona em 1992. Onde? Em Wembley. Foi ali, no estádio sagrado dos ingleses, que fizeram o último jogo juntos sem ser na seleção, antes de Vialli rumar à Juventus. Quase 30 anos depois, e após uma carreira que acabou na Premier League, ambos voltaram para reescrever a história.

Vialli acabou no Chelsea, teve uma experiência de dois anos como treinador, ainda passou pelo Watford mas foi depois para outros caminhos com menor ligação ao futebol: escreveu um livro com o amigo e jornalista Gabriele Marcotti sobre as diferenças do jogo entre Itália e Inglaterra, foi comentador televisivo na Sky e mais tarde na BBC, criou uma Fundação que angaria fundos para a pesquisa e desenvolvimento de curas para o cancro e para a esclerose lateral amiotrófica (ELA), fundou uma plataforma de investimento no desporto profissional com Fausto Zanetton (a Tifosy). Já Mancini acabou no Leicester, começou por treinar a Fiorentina e fez carreira não só em Itália (Lazio e Inter) mas também em Inglaterra (Manchester City), Turquia (Galatasaray) e Rússia (Zenit). Ao todo, conquistou um total de 13 títulos em países diferentes até chegar em 2018 à seleção italiana.

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Em outubro de 2019, a pedido expresso de Mancini, Vialli veio reforçar a estrutura da seleção como chefe da delegação. E foi já nessa condição que festejou com o amigo a maior vitória que teve na vida: depois de 17 meses a lutar contra um cancro no pâncreas, com uma recuperação e uma recaída pelo meio a obrigar a um novo programa de sessões de tratamento, soube que tinha derrotado de vez a doença e deu uma entrevista com um especial impacto em Itália por surgir em abril de 2020, no pico da primeira vaga da pandemia. “Tenho vergonha de estar tão feliz. Foi complicado, mesmo para uma pessoa dura como eu, física e mentalmente. Estar saudável significa ver-me bem ao espelho, ver o cabelo a crescer, não precisar de desenhar as sobrancelhas com um lápis. Pode parecer estranho, mas sinto-me com sorte em comparação com muitas pessoas”, disse ao La Repubblica.

“Tenho vergonha de estar tão feliz”. A história de Vialli, o bad boy que cresceu num castelo e superou luta de 17 meses contra um cancro

Depois das lágrimas de alívio que choraram no último ano, vieram as lágrimas de alegria e no mesmo local onde tinham soltado as lágrimas de tristeza em 1992. “Eu e o Gianluca [Vialli] já nos conhecemos há muito tempo, por isso é natural que seja diferente. Não crescemos juntos mas é quase como se tivéssemos. Passámos vários anos juntos e temos uma relação que ultrapassa uma simples amizade. É quase como um irmão para mim, à semelhança de todos aqueles com quem joguei naquela equipa da Sampdoria”, disse Mancini antes do jogo da Itália com a Espanha. Hoje, o abraço entre ambos também foi muito mais do que isso. E acaba por simbolizar também uma das mais bonitas histórias de uma Bella Italia que estava destinada a vencer este Europeu.