Jean Cocteau escreveu o monólogo “A Voz Humana” em 1928, para a atriz belga Berthe Bovy interpretar, dois anos mais tarde, a mulher que, ao telefone, fala pela última vez com o seu antigo amante que se vai casar. Cocteau chamou-lhe “teatro puro”, composto por “um ato, um quarto, uma personagem, o amor, um telefone”. O texto já viajou pela ópera (posto em música por Francis Poulenc), pelas artes plásticas (desenhado por Bernard Buffet) e pela televisão e pelo cinema, onde foi interpretado por várias atrizes, incluindo Ingrid Bergman, Sophia Loren, Liv Ullmann ou, mais recentemente, Rosamund Pike. Em Portugal, Solveig Nordlund adaptou-o como “Uma Voz na Noite”, com Isabel de Castro, em 1998.

Em 1948, Roberto Rossellini fê-lo com Anna Magnani na fita em episódios “O Amor”, tendo também assinado o argumento com Fellini. Magnani pediu a Cocteau que lhe escrevesse as falas do amante, porque não queria falar no vazio, sem réplica. Três anos depois, ironicamente, Anna Magnani ficou na situação da mulher do monólogo, quando Rossellini a trocou por Ingrid Bergman. Que, em 1966, por sua vez, o interpretou para a televisão sueca. Antes disso, em 1964, Simone Signoret gravou “A Voz Humana” em disco, em sua casa, não sem peripécias.

[Veja a versão com Anna Magnani:]

Depois de uma primeira tentativa, Signoret renunciou, emocionalmente perturbada pelo texto de Cocteau. Foi Yves Montand quem a convenceu a não desistir. A atriz escolheu ler o texto de chofre, sem o ter preparado, e no disco ouve-se Signoret a folhear as páginas, bem como a mexer nos lenços de papel com que vai limpando as lágrimas, que mal consegue conter. Jean Cocteau sempre aprovou as várias interpretações e adaptações a outras artes de “A Voz Humana”, e gostava de vê-la “viajar por outros organismos que o nosso”, como disse após ouvir a versão musical de Poulenc, em 1958.

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Pedro Almodóvar pegou agora em “A Voz Humana” e em Tilda Swinton para fazer uma curta-metragem, chamando-o ao seu universo visual, emocional e dominado pelas mulheres, suas idiossincrasias, sentimentos e psicologia. Estamos perante uma “almodóvarização” em regra do monólogo de Cocteau, no qual o realizador mexeu bastante para o formatar a seu gosto, numa versão alternadamente cinematográfica e teatral, em que a artificialidade dos cenários ora é escondida, ora fica toda à mostra, com a personagem a circular entre frustração e desespero, acalmia e desejo de vingança, e metendo um cão na história (que pertencia ao amante e sente tanto a falta dele como a mulher).

[Veja o “trailer” de “A Voz Humana”:]

Esta mulher não é também a do texto original, que acaba o telefonema vergada ao peso do amor que ainda sente, e sentirá sempre, pelo homem que a deixou. Pelo contrário, é uma típica mulher de Almodóvar, impulsiva e excessiva, de comportamentos drásticos e gestos melodramáticos, que ora tenta suicidar-se com barbitúricos (o cão salva-a, qual Lassie), ora vai comprar um machado para reduzir a tiras um fato do amante. E que no final, em vez de ficar a carpir o seu infortúnio, pega fogo à casa (e não apenas à cama, como a Pepa de Carmen Maura em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”), reduz o passado a cinzas, fica com o canídeo e vai continuar a viver. E, quem sabe, amar outra vez.

É pena que, para protagonizar este miniatura iconoclasta, nervosenta, “kitschy” e de personalidade “feminista” (ela reflete também uma certa ideia da situação e da representação da mulher, predominante nos tempos que correm) e seu primeiro filme em inglês, Pedro Almodóvar não tenha escolhido uma atriz mais carnal, sedutora e feminina do que Tilda Swinton. “A Voz Humana” é complementado por uma entrevista feita pelo crítico inglês Mark Kermode ao realizador e à atriz, em que Almodóvar diz, a certa altura, querer muito voltar a dirigir Swinton noutro filme. Felizmente, não há traço dela no elenco da sua nova longa-metragem, “Madres Paralelas”.