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Sérgio Tréfaut filmou o Rio de Janeiro que cantava para sobreviver que agora não canta mais

Este artigo tem mais de 2 anos

Nas serestas nos Jardins do Palácio do Catete, Rio de Janeiro, um grupo de pessoas junta-se para cantar melodias de outros tempos e para se manterem vivas. "Paraíso" é o filme que que as celebra.

A rodagem do filme terminou em fevereiro de 2020. Pouco tempo depois, foram várias as "personagens" que morreram vítimas de Covid-19
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A rodagem do filme terminou em fevereiro de 2020. Pouco tempo depois, foram várias as "personagens" que morreram vítimas de Covid-19

A rodagem do filme terminou em fevereiro de 2020. Pouco tempo depois, foram várias as "personagens" que morreram vítimas de Covid-19

Pode dizer-se que Sérgio Tréfaut filmou o paraíso. O realizador, que em 2018 regressou para o Brasil – depois de viver durante décadas em Portugal –, encontrou nas serestas – ajuntamentos populares que mantêm vivo o cancioneiro popular – dos Jardins do Palácio do Catete uma espécie de utopia, onde as pessoas se juntam pela felicidade de cantar, indiferentes a construções sociais. A maior parte é uma população idosa que mantém viva uma tradição. Mas também se mantém viva por encontrar ali a alegria de viver.

Sérgio filmou “Paraíso” entre junho de 2019 e fevereiro de 2020, um mês antes de o mundo se fechar casa. Por causa do momento – em que ainda se vive – “Paraíso” tem um outro peso. Algumas das pessoas que aparecem no filme entretanto morreram, vítimas de Covid-19, e as serestas, que são uma metáfora para um Brasil que o realizador queria filmar, não podem ser hoje experienciadas como há dois anos, quando o Tréfaut começou a filmar. Estivemos à conversa com o realizador. “Paraíso” estreia esta semana em salas de Lisboa, Porto, Coimbra e Cascais.

[o trailer de “Paraíso”, de Sérgio Tréfaut:]

Que Brasil encontrou quando regressou ao seu país há uns anos?
Voltei ao Brasil no momento da viragem. Estive apresentando o “Raiva” na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Isso aconteceu durante as eleições brasileiras e fui ao Rio de Janeiro votar. Estive lá no momento que o Bolsonaro venceu as eleições, no final de outubro. E mudei-me para o Brasil em dezembro de 2018. Nesse tempo fui vivendo as consequências do início da tomada de posse do Bolsonaro, no período em que o Sérgio Moro era ministro da Justiça. Passei o ano de 2019 lá e o início de 2020, assistindo às consequências para o meu universo, que é muito pequenino, o das pessoas do cinema.

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Como foi viver essas consequências de que fala na primeira pessoa?
Tínhamos as vazas cortadas. Todo o sistema que permitia que existisse um cinema brasileiro forte, nacional e internacionalmente, além das séries da Globo, deixou de existir. Houve um princípio de uma caça às bruxas sem que houvesse propriamente prisões e perseguições políticas, mas houve um corte financeiro. Era impossível fazer filmes com apoios estatais. Era uma classe considerada não desejável do ponto de vista sociológico, tinha todos os seus financiamentos cortados. Aquele processo que já existia com as crises financeiras de 2013, de vinda para a Europa, de pessoas de todo o género, no meu universo foi claramente aumentado nesse período.

Quando começou a filmar “Paraíso”?
Comecei a filmar no verão de 2019. O último dia em que filmei foi a 15 de fevereiro de 2020, porque tinha de ir a Marrocos para fazer uma retrospetiva dos meus filmes. Quando voltei para o Brasil, em meados de Março, o Jardim já estava fechado. As pessoas foram convidadas a ficar em casa e não pude mais filmar.

"Este Brasil que eu procurava, era um Brasil que se apagava, porque os valores que foram sendo dominantes a partir de certo momento, eram valores humanos que não correspondem aos que transportam estas personagens"

Na descrição do filme usa o termo “país que se apaga”. Pode elaborar?
Comecei a filmar nos Jardins [do Palácio] do Catete buscando reencontrar no Brasil algo que me era muito caro, carinhoso, que eu encontrava um passado que tinha deixado na minha infância – feliz — até 1975, quando fugi do Brasil com a minha família europeia. Este Brasil que eu procurava, era um Brasil que se apagava, porque os valores que foram sendo dominantes a partir de certo momento, eram valores humanos que não correspondem aos que transportam estas personagens, que não são daquelas músicas, as músicas que estão no “Paraíso”. Aquele pequeno paraíso que existe nos Jardins do Catete corresponde a algo de ancestral que atravessa gerações, que foi perpetuado, desde a senhora de oitenta e tal anos, até aos jardineiros que limpam o jardim, que têm uma cordialidade única. Mas não é o Rio de Janeiro das ruas, a selva de pedra. Houve um movimento de destruição desse Brasil cordial, amável, ao longo do século XX, sobretudo a partir de 1950/60 com uma força maior mais tarde. Não estou a falar de questões ideológicas, políticas, esquerda ou direita, estou a falar do que é um equivoco sobre a modernização, e um equivoco sobre o que é um mito de progresso a qualquer custo, que destrói o património natural e humano brasileiro. Ali encontrei algo que amava.

O que era?
Antes disso pensei em outros filmes. Tentei fazer um filme sobre o Rio à noite, sobre os imigrantes brasileiros que chegavam a Portugal. Fui parando as coisas a meio do caminho por uma razão ou outra, porque era ambicioso, ou não correspondia à realidade com que me apaixonava. Eu consigo viver no Rio de Janeiro hoje porque vivo num lugar que não é uma redoma de vidro, não vivo num condomínio, num universo de pessoas que afastam uma realidade. Vivo num bairro agradável, de Santa Teresa, onde vejo a cidade inteira, como em Lisboa vejo o Tejo, o Castelo, é uma coisa que eu gosto. Lisboa é uma cidade que foi descaracterizada e destruída pelo turismo, nos últimos anos, transformando a cidade numa espécie de cartão-postal falso, completamente Disneylândia para turista. O Rio de Janeiro não sofreu esse processo, mas outro, foi desfigurado progressivamente por uma construção feroz que despreza o património. E nos valores humanos isso também se transporta. Tentei encontrar as pessoas que eram fieis depositárias daquilo. O João Moreira Sales, que é um cineasta que muito admiro, quando viu este filme, disse devia ser vendido nas farmácias e exibido em praça pública, para reconciliar os brasileiros com o seu país, os que vivem em divórcio com o seu país. Acaba por mostrar um Brasil utópico, com o qual nós sonhamos, em que negros e brancos funcionam de maneira harmónica, ricos e brancos sentam-se ao mesmo lado. Há um Brasil profundo, ancestral, que é carregado pela musicalidade, pela “Carinhoso”, a música que abre o filme, é património de toda aquela nação. Todos eles cantam “Carinhoso”. Não encontrará em 220 milhões de brasileiros um que não saiba cantar “Carinhoso”, é mais ou menos isso. Fui buscar o que restava do meu sonho.

"Neste filme tem pessoas que dizem, claramente, com todas as palavras: até aos oitenta anos não fui feliz, mas agora sou"

Muitas dessas canções fazem parte do imaginário popular?
Há uma questão geracional. As pessoas até 30 anos, conhecem todas aquelas músicas, praticamente. Se o filme tem 30 músicas, conhecem 28 ou 29. Eu conhecia todas menos uma, que era um original. As originais eu não conhecia. Há dois temas originais e um especial, que não conhecia. As outras conhecia todas.

As serestas acontecem por volta de que horas?
Há uma seresta que começa às seis da tarde, mas aos fins de semana há uma às três, sábados e domingos e há outra ao domingo, ao meio-dia. Às segundas não há porque o Museu do Património está fechado.

No filme vê-se a casa de algumas personagens. Foi a casa de muitas pessoas?
Gostaria de ter filmado mais, montei este material com o que tinha de filmagens. Fui a casa de várias pessoas que também não estão no filme, que não coloquei. Há uma ambivalência, dualidade, na doçura, abertura. As pessoas que têm alguns meios têm mais facilidade de vos convidar a casa delas, do que outras que podem ter mais de vergonha. Não é geral. Por vezes não existia facilidade de estar com pessoas, porque havia pessoas com receios de não estar em condições. No entanto, a Beth, aquela pessoa muito pequenininha, que tem 1,25 ou 30 e tem uma espécie de bossa nas costas e quase que não vê. Ela mora num quarto que tem 2 metros por 3, numa vila, como se vê no filme. Tem uma casa de banho lá dentro e ela vive com a filha. Não se vê no filme a filha, porque nem nós cabíamos. Tiínhamos a câmara do lado de fora da porta para a filmar lá dentro. Muito modesto, mas cheio de dignidade, cheio de adoração pelo que faz. Ela mostrava todas as letras que ela aprendida. Ela era daquelas pessoas, como muitos deles, que levantava de manhã, pensando no que vai cantar hoje. Era um conjunto de pessoas que se reunia todos os dias. Há oito serestas semanais e muitos deles vivem para aquilo.

E vemos que é o que lhes dá alegria de viver.
O filme mostra muito claramente… há um preconceito geral da inutilidade da vida e do sentido da vida mundial a partir de uma certa idade. Neste filme tem pessoas que dizem, claramente, com todas as palavras: até aos oitenta anos não fui feliz, mas agora sou.

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