Depois de um arranque meramente formal no domingo, a COP26 começou esta segunda-feira em Glasgow com um desfile de líderes mundiais a passarem pelo centro de congressos da cidade escocesa e a multiplicarem-se em apelos à ação, compromissos vagos e palavras de ordem. De uma série de intervenções que marcou a cimeira de líderes — o primeiro ato das duas semanas de COP26 —, destacou-se uma novidade de peso: o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, anunciou que o seu país, o terceiro maior poluidor do mundo atrás da China e dos EUA, se compromete com a neutralidade carbónica até 2070.

Com uma economia ainda largamente dependente do carvão (que cobre cerca de 70% das suas necessidades energéticas), a Índia está ainda longe de conseguir completar a transição energética. Até aqui, a Índia tinha-se recusado a assumir uma meta para a neutralidade carbónica, preferindo argumentar que o combate às alterações climáticas depende sobretudo da capacidade dos países mais desenvolvidos de ajudarem financeiramente os países em vias de desenvolvimento na transição energética.

A cimeira de líderes vai contar com intervenções de quase 200 chefes de Estado e Governo até terça-feira e segue-se a uma reunião decisiva do G20, em Roma, em que os líderes das 20 maiores economias do mundo (que representam cerca de 80% das emissões a nível global) assumiram o compromisso de implementar medidas de curto e médio prazo para manter o aquecimento global até ao final do século abaixo dos 1,5ºC. Tudo para atingir a neutralidade carbónica até meados do século. A formulação vaga deu espaço a países como a China ou a Índia assumirem compromissos mais dilatados no tempo (2060 e 2070 respetivamente).

Índia, o terceiro maior poluidor do mundo, assume na COP26 a meta climática pela primeira vez: neutralidade carbónica até 2070

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Guterres: “O planeta está a cavar a própria sepultura”

Além da novidade anunciada pelo governante indiano, o primeiro dia da cimeira ficou marcado essencialmente por discursos com palavras pouco comprometedores, apesar da força das palavras usadas por figuras como Joe Biden, Angela Merkel, Emmanuel Macron ou, sobretudo, António Guterres, que abriu a conferência acusando o planeta de estar a “cavar a própria sepultura” com o recurso a combustíveis fósseis.

“O nosso planeta está a mudar em frente aos nossos olhos. Das profundezas do oceano ao topo das montanhas, dos glaciares que derretem aos impiedosos fenómenos extremos. O nível da água do mar sobe ao dobro do ritmo de há 30 anos. Os oceanos estão mais quentes do que nunca e a aquecer mais rapidamente. Partes da Amazónia estão hoje a emitir mais dióxido de carbono do que aquele que absorvem”, começou por descrever Guterres, antes de passar aos apelos.

Não tenhamos ilusões: se os compromissos ficarem aquém do esperado no fim desta COP, os países vão ter de rever os seus planos climáticos. Não a cada cinco anos, mas todos os anos até garantirmos que é possível chegar aos 1,5ºC. Até que os subsídios para os combustíveis fósseis acabem, até haver o dióxido de carbono ter um preço e até o carvão ser descontinuado”, afirmou.

“A nossa dependência dos combustíveis fósseis está a levar a humanidade ao limite”, afirmou. “Ou a paramos ou ela nos para. É tempo de dizer chega. Chega de nos matarmos com dióxido de carbono. Chega de tratar a natureza como uma casa-de-banho. Chega de queimar e perfurar cada vez mais fundo. Estamos a cavar as nossas próprias sepulturas.

Boris: “As crianças de amanhã terão um ressentimento que eclipsa os ativistas climáticos de hoje”

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, o anfitrião da cimeira, também usou da palavra no início da cimeira, com foco no dramatismo. “O relógio está a andar ao ritmo furioso de centenas de milhares de milhões de turbinas e sistemas que cobrem a Terra num manto sufocante de dióxido de carbono“, disse Johnson. “Quanto mais demorarmos a agir, pior vai ficar e mais alto o preço a pagar quando formos forçados a agir. Se não levarmos as alterações climáticas a sério hoje, será demasiado tarde para os nossos filhos o fazerem amanhã.”

“As crianças que nos vão julgar ainda não nasceram, e os filhos deles”, disse, sublinhando que as gerações futuras “vão julgar-nos com uma amargura e um ressentimento que eclipsa o dos ativistas climáticos de hoje”. E rematou: “Eles vão ter razão.”

Biden: “Os Estados Unidos não estão apenas de volta como vão liderar com o poder do exemplo”

O Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, também subiu esta segunda-feira ao palco da COP26 para se assumir como um líder dos esforços globais de combate às alterações climáticas, embora surja em Glasgow num contexto político que dificulta a sua ambição.

Por um lado, os EUA regressaram recentemente ao Acordo de Paris, depois de Donald Trump ter abandonado o tratado e revertido várias políticas ambientais e climáticas de Barack Obama. Mas, por outro lado, o plano de Joe Biden para recompor os compromissos climáticos dos EUA colapsou recentemente no Senado norte-americano, obrigando-o a esboçar à pressa um plano B e a arriscar a sua credibilidade como putativo líder global destes esforços.

“Queremos demonstrar que EUA não estão apenas de volta à mesa [de negociações], mas vão liderar com o poder do exemplo”, disse Biden no seu discurso, que excedeu largamente os 3 minutos atribuídos a cada chefe de Estado. Perante os líderes de todo o mundo, Joe Biden pediu que a COP26 fosse o “pontapé de saída” para uma década ambiciosa e sublinhou que as alterações climáticas não são hipotéticas já estão a ter um impacto assinalável no planeta — dando como exemplo os fenómenos extremos que se têm verificado ao longo do último ano nos EUA e noutros pontos do mundo.

Nenhum de nós vai conseguir escapar ao pior que ainda está para vir se não formos capazes de aproveitar este momento”, disse Joe Biden. “Este é o desafio das nossas vidas.”

Biden usou palavras sonantes, salientou a importância de alcançar a neutralidade carbónica até 2050 — o objetivo de longo prazo dos EUA — e anunciou que o país vai contribuir pela primeira vez (com um valor não anunciado) para o Fundo de Adaptação, um fundo global dedicado a ajudar os países menos desenvolvidos a financiarem a transição energética.

Von der Leyen. Europa vai aumentar o financiamento dado aos países mais vulneráveis

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, assumiu na mesma sessão o compromisso do bloco dos 27 de aumentar em 4,3 mil milhões de euros o financiamento dado aos países mais vulneráveis para os seus projetos climáticos.

Noutra sala (os discursos decorreram em salas separadas, uma para chefes de Estado e outra para chefes de Governo), a chanceler alemã, Angela Merkel, lembrou aos participantes da COP26 a necessidade de “mudar a maneira de fazer negócios” e defendeu que “se coloque um preço nas emissões de dióxido de carbono, como já fazemos na União Europeia, como a China pretende fazer e como precisamos de aplicar noutros países do mundo”.

Merkel defende que o impacto climático passe a ser um elemento presente na definição dos preços de produtos e serviços, de modo a inverter os equilíbrios atuais, baseados na dependência dos combustíveis fósseis. “Se o fizermos, podemos garantir que as nossas indústrias, as nossas atividades económicas desenvolvem as melhores tecnologias e métodos para atingirem a neutralidade carbónica“, disse.

COP26 começou discreta em Glasgow com os olhos nos compromissos que os países do G20 assumiram em Roma

Quem também falou esta segunda-feira perante o plenário da COP26 foi o Presidente francês, Emmanuel Macron, que pediu mais ambição aos maiores poluidores do mundo. “A chave para os próximos 15 dias, aqui na COP, é que os maiores emissores, cujas estratégias nacionais não estão em linha com a nossa meta de 1,5 graus, aumentem as suas ambições nos próximos 15 dias. É a única forma de tornarmos a nossa estratégia mais credível“, disse Macron.

China e Rússia ausentes

Dos cinco maiores poluidores do mundo (China, EUA, União Europeia, Índia e Rússia), duas ausências já estão a ser notadas na COP26: o Presidente chinês, Xi Jinping, e o Presidente russo, Vladimir Putin, não vão estar presentes em Glasgow.

Ainda assim, Xi Jinping enviou uma declaração escrita esta segunda-feira para a cimeira em que pediu aos países mais desenvolvidos que ajudassem os mais pobres a implementar políticas mais ambiciosas de combate às alterações climáticas. Porém, a curta declaração de Xi não incluiu qualquer novo compromisso climático — numa conferência cujo objetivo central é fazer um balanço da implementação de medidas ao abrigo do Acordo de Paris e submeter novos compromissos que assegurem que o objetivo central do acordo (manter o aquecimento global abaixo de 2ºC, idealmente em torno dos 1,5ºC) continua a ser possível de alcançar.

Quem também faltou foi o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que mandou um vídeo para ser mostrado durante a conferência. O ministro do Ambiente brasileiro, Joaquim Leite, falou num evento paralelo e comprometeu o país a alcançar a neutralidade carbónica até 2050. Por seu turno, Bolsonaro  afirmou, no vídeo, que o Brasil “não faz parte do problema”, mas sim “da solução“.