Um líder religioso que “deu significado à expressão bíblica de que a fé sem trabalho está morta”. “Patriota sem paralelo”, o arcebispo emérito Desmond Tutu, um dos rostos da luta contra o regime do apartheid na África do Sul, morreu este domingo, aos 90 anos, e o mensageiro não poupou nos adjetivos.

A sua morte foi anunciada esta manhã na Cidade do Cabo pelo presidente do país, Cyril Ramaphosa, que descreveu o clérigo como um “líder espiritual icónico, ativista anti apartheid e defensor dos direitos humanos em todo o mundo”.

O funeral do arcebispo decorrerá no próximo sábado na Catedral de São Jorge, a sua antiga paróquia na Cidade do Cabo. “Os preparativos para uma semana de luto estão na sua fase inicial”, disse a fundação através de uma declaração, acrescentando que “vários eventos foram confirmados para a próxima semana, que antecede o funeral do arcebispo, no sábado, 1 de janeiro de 2022”.

No Twitter, Ramaphosa voltou a evocar o nome de Tutu e a assinalar a perda para a nação sul africana que se tem vindo a despedir da “geração extraordinária” que garantiu um país livre.

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O país chora Tutu pouco mais de um mês depois da morte de Frederik Willem de Klerk, o último presidente antes dos tempos do Apartheid e figura chave no processo de transição.

Um “tesouro nacional” nas palavras do presidente Ramphosa, quando Tutu alcançou a proveta marca dos 90, em outubro passado, foi ordenado sacerdote no começo da década de 60, após estudar no St. Peter’s Theological College, em Rosettenville, o popular bairro de portugueses no sul de Joanesburgo.

Assumiria as funções de bispo do Lesoto entre os anos de 1976 e 1978. Depois da função de assistente, tornou-se bispo em Joanesburgo em 1985, usando a sua influente voz no combate à segregação que vigorou naquele país entre 1948 e 1991. Foi nomeado, em 1986, arcebispo anglicano da Cidade do Cabo, o primeiro negro a alcançar semelhante posição.

Depois de Nelson Mandela se tornar o primeiro presidente negro da África do Sul (1994-1999), Desmond Tutu foi designado para liderar a Comissão de Verdade e Reconciliação destinada a investigar atrocidades cometidas por ambas as partes durante o período do apartheid, presidindo ao mecanismo criado pelo Governo de Unidade Nacional para facilitar o processo de reconciliação nacional sul-africano após a queda do regime. Tutu acabaria por passar à História como a consciência moral do país.

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Também a Tutu se deve o termo “nação arco-íris”, usada para descrever uma África do Sul multi racial num cenário pós-apartheid, apesar de nos anos mais recentes o arcebispo emérito admitir que a nação não caminhara em absoluto para o projeto que sonhara.

Diagnosticado com cancro da próstata em finais de 90, o arcebispo foi submetido a várias intervenções em diversas ocasiões. O arcebispo anglicano estava debilitado há vários meses, durante os quais não falou em público, mas ainda cumprimentava os jornalistas que acompanhavam cada uma das suas saídas recentes, como quando foi tomar a sua vacina contra a covid-19 num hospital ou quando celebrou os seus 90 anos em outubro.

Acabou por morrer “de forma tranquila no centro de repouso Oasis Frail”, na Cidade do Cabo.

A Cidade do Cabo vai iluminar a Table Mountain e o edifício da Câmara Municipal de roxo, a cor com a qual o arcebispo costumava vestir-se. As luzes roxas acenderão às 20 horas locais (18 horas em Lisboa) e permanecerão acesas todos os dias desta semana até a meia-noite.

Esperamos que isso ajude a lembrar e homenagear o maior residente da Cidade do Cabo e tudo o que ele representou”, disse o autarca Geordin Hill-Lewis.

Políticos e ativistas recordam Tutu. Twitter lembra lemas inspiradores

As reações à notícia estão a suceder-se e não é apenas na África do Sul. A fundação Nelson Mandela lembrou as “contribuições nas lutas contra a injustiça, local e global”, que Tutu acompanhou com um “pensamento profundo sobre a construção de futuros de liberdade para sociedades humanas”. A reação da fundação, citada pela Reuters, define o líder religioso assim: “Um ser humano extraordinário. Um pensador. Um líder. Um pastor”.

Bernice King, filha de Martin Luther King, já veio dizer-se “triste” por saber da morte de um “sábio global, líder de direitos humanos e peregrino poderoso da terra”: “Estamos todos melhor porque ele esteve cá”, resumiu.

O Papa Francisco considerou que Tutu esteve “ao serviço do Evangelho”, através da “promoção da igualdade racial e da reconciliação na sua África do Sul natal”, como pode ler-se num telegrama enviado pelo secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin.

Já o Dalai Lama recordou, como refere a agência Lusa, um amigo de longa data e um homem “que se dedicou inteiramente a servir os seus irmãos e irmãs pelo bem comum”, dizendo que ele foi “um verdadeiro humanista e um defensor comprometido dos direitos humanos”.

Também vão surgindo as reações da esfera política internacional: o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, reagiu à morte do que descreveu como uma “luz que guiava inúmeras pessoas no mundo”, frisando o seu empenho na luta pela “dignidade humana e igualdade”.

A Rainha de Inglaterra reagiu esta tarde no Instagram, louvando os “esforços incansáveis” de Tutu pelos direitos humanos e dizendo recordar com carinho os seus encontros com o líder religioso, nos quais se mostrava “caloroso e bem humorado”. Por toda a Commonwealth, frisa a rainha, a sua falta será sentida, dado o “carinho e estima” que as populações lhe reservavam.

Toda a família real se junta a mim para expressar a nossa profunda tristeza com a notícia da morte do arcebispo Desmond Tutu, um homem que defendeu incansavelmente os direitos humanos na África do Sul e em todo o mundo”, disse a soberana, numa mensagem de condolências.

Também no Reino Unido, o número dois do governo, Dominic Raab, recordou no Twitter uma das citações mais famosas de Tutu: “Não levantes a tua voz, melhora o teu argumento”. “Nunca pareceu mais adequada”, rematou.

Não é a única frase de Tutu que serviu de inspiração aos seus admiradores e que está agora a ser recordada. Nas redes sociais, uma clara favorita entre as suas citações é esta: “Se queres paz, não fales com os teus amigos. Fala com os teus inimigos”.

MNE apresenta condolências à África do Sul por Desmond Tutu, que “imaginou e construiu” país onde “todos são iguais”

O Governo português também já reagiu. Numa nota publicada no Twitter, o Ministério dos Negócios Estrangeiros lembrou o legado de Tutu: “Com Nelson Mandela, Desmond Tutu imaginou e construiu uma África do Sul onde todos cabem e todos são iguais”. Recordando que Portugal tem “uma tão grande comunidade na África do Sul”, o Governo deixou as suas condolências pelo líder religoso que “agiu em nome da paz, do pluralismo e da dignidade humana”.

Já Marcelo Rebelo de Sousa deixou uma nota no site da Presidência da República, garantindo que Tutu deixa “um legado para toda a Humanidade” pela coragem que mostrou a lutar contra o apartheid, as “marchas pacíficas” que liderou e que “mudaram mentalidades” e a “amplitude moral e inclusiva” que ajudou a democracia sul-africana a atingir.

“Desmond Tutu foi uma das grandes figuras do século XX. Um século maldito em tantos aspetos, mas com marcos de superação e exemplos de humanismo que prevalecem nas nossas memórias. Cabe a todos nós, líderes do século XXI, sabermos preservar as lições intemporais que gigantes pela paz, como o Arcebispo Tutu, nos deixaram”, remata Marcelo.

António Guterres: “Durante os dias mais sombrios do Apartheid, ele foi um farol brilhante para a justiça social”

O secretário-geral da Nações Unidas (ONU), António Guterres, lamentou a morte do arcebispo sul-africano Desmond Tutu, que qualificou como “uma voz inquebrantável para os que não têm voz”.

O arcebispo Tutu foi uma figura da maior transcendência do mundo, que se destacou pela paz e por inspirar gerações ao redor do mundo. Durante os dias mais sombrios do Apartheid, ele foi um farol brilhante para a justiça social, liberdade e resistência não violenta”, disse Guterres, num comunicado.

O secretário-geral das Nações Unidas destacou o prémio Nobel da Paz que Tutu recebeu em 1984, em reconhecimento pela sua “determinação incansável” em promover a solidariedade global.

Guterres lembrou que, enquanto presidente da Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul, o arcebispo “deu uma contribuição incomensurável para garantir uma transição pacífica, mas justa, para uma África do Sul democrática”.

Embora a morte do arcebispo Tutu deixe um grande vazio na cena mundial e nos nossos corações, seremos sempre inspirados pelo seu exemplo para continuar a lutar por um mundo melhor para todos”, concluiu o líder da ONU, para quem Tutu sempre mostrou “grande sabedoria e experiência” com “humanidade, humor e coração”.

No comunicado, Guterres também fez referência ao espírito multilateralista de Tutu e à sua colaboração com as Nações Unidas em várias missões, entre as quais destacou a participação como “membro ilustre” da Comissão Consultiva das Nações Unidas para a Prevenção do Genocídio, ou na missão de investigação na Faixa de Gaza, em 2008.

O secretário-geral da ONU recordou ainda que, nas últimas décadas, Tutu “continuou a lutar apaixonadamente perante muitos dos graves problemas de nosso tempo: pobreza, mudanças climáticas, direitos humanos e sida, entre outros”.

Presidente moçambicano disse que foi “uma grande perda para África Austral e para toda África em geral”

O Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, considerou uma “grande perda” a morte do arcebispo emérito sul-africano, classificando-o como um “humano extraordinário” que dedicou a vida para lutar contra o apartheid.

“Quero endereçar os meus sinceros pêsames ao povo, governo sul-africano e em particular ao meu homólogo e irmão, Presidente Ramaphosa, assim como ao povo africano, por esta grande perda para África Austral e para toda África em geral”, disse Filipe Nyusi, na sua página da rede social Facebook.

Para Nyusi, morreu um “defensor dos direitos dos oprimidos”, que se dedicou à reconciliação entre os sul-africanos, “mostrando a necessidade de união e construção de uma nação baseada na diversidade”.

Joe e Jill Biden lamentaram a morte de Tutu, um “verdadeiro servo de Deus e do povo”

O Presidente e a primeira-dama dos Estados Unidos lamentaram a morte do arcebispo emérito sul-africano Desmond Tutu, que descreveram como um “verdadeiro servo de Deus e do povo”. O seu legado transcende fronteiras e ressoará ao longo dos séculos, concluíram.

Esta manhã, depois do Natal, parte-nos o coração saber que um verdadeiro servo de Deus e do povo, o arcebispo Desmond Tutu da África do Sul, faleceu”, disseram Joe e Jill Biden, num comunicado distribuído pela Casa Branca.

Os Biden recordaram que a “coragem e clareza moral” de Tutu inspiraram Washington a mudar a sua política em relação ao sistema de segregação racista do ‘apartheid’.

Lembraram o “calor e alegria” com que os recebeu numa visita a África do Sul para o Campeonato do Mundo de 2010, acrescentando estarem muito gratos pelos momentos que passaram juntos nos últimos anos.

“Há poucos meses unimo-nos ao mundo para comemorar o seu 90.º aniversário e refletir sobre o poder da sua mensagem de justiça, igualdade, verdade e reconciliação num tempo em que enfrentarmos o racismo e o extremismo”, afirmaram.

Atualizado com a reação de António Guterres às 20 horas
Atualizado com as condolências do casal Biden às 23 horas