Em 1999, o realizador e crítico Peter Bogdanovich, que morreu esta quinta-feira, 6 de janeiro, aos 82 anos, veio a Portugal participar na Bienal de Cascais e aí ser homenageado, bem como acompanhar a edição portuguesa do seu livro de crónicas Pieces of Time (Nacos de Tempo, Livros Horizonte). Entrevistei-o nessa altura para o Diário de Notícias e foi uma conversa inesquecível, em que Bogdanovich não só falou dos seus filmes como também contou histórias sobre todos os grandes nomes da velha Hollywood que tinha conhecido e entrevistado, de Allan Dwan e John Ford a Orson Welles (sobre o qual tem um livro fundamental, This is Orson Welles, e cuja carreira tentou, debalde, relançar), de Cary Grant a Jerry Lewis. Fui carregado com todos os livros que tinha dele, e Bogdanovich teve a paciência e a gentileza de escrever uma dedicatória diferente em cada um deles. Foi uma das melhores tardes da minha vida.

[“Targets”:]

Peter Bogdanovich foi um daqueles casos de um cinéfilo militante que, a exemplo dos membros da Nova Vaga francesa, começou por escrever sobre cinema, passou para o outro lado da barreira e tornou-se um realizador cujos filmes reflectiam a sua imensa cinefilia e vasto conhecimento do cinema, tendo continuado sempre a escrever e publicar artigos e livros sobre a sua arte de eleição, que respirava por todos os poros. Paladino dos mestres da Hollywood clássica, Bogdanovich fez a ponte entre esta e a nova Hollywood da sua geração, a de Coppola, Friedkin (com os quais formou a produtora The Directors Company), Spielberg, Lucas e De Palma, tal como havia feito a ponte entre crítica e realização, um caso raro nos EUA.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[“A Última Sessão”:]

Entre os seus livros, contam-se The Cinema of Howard Hawks, The Cinema of Alfred Hitchcock, John Ford, Allan Dwan; The Last Pioneer, Who the Devil Made It: Conversations with Legendary Film Directors ou Who the Hell Was in It: Conversation’s with Hollywood’s Legendary Actors. Em 1984, Peter Bogdanovich escreveu The Killing of the Unicorn, sobre o assassínio de Dorothy Stratten, atriz e Playmate do Ano da Playboy. Stratten, que tinha um caso com Bogdanovich, foi morta pelo seu ciumento agente e marido após entrar na comédia “Romance em Nova Iorque” (1981). O caso deu muito brado na altura e foi passado ao cinema por Bob Fosse em “Star 80” (1983).

[“Que se Passa Doutor”:]

Peter Bogdanovich começou no cinema sob a asa de Roger Corman, do qual foi assistente antes de assinar “Alvos” (1968), um brilhante “thriller” de baixo orçamento com Boris Karloff, a que se seguiram os seus três maiores sucessos, “A Última Sessão” (1971), baseado no romance de Larry McMurtry, um filme “europeu” na forma e americano até à raiz dos cabelos no fundo, nomeado para oito Óscares; a comédia “screwball” de homenagem a Howard Hawks “Que Se Passa Doutor?” (1972), e “Lua de Papel” (1973), um “road movie” passado durante a Grande Depressão, com Ryan O’Neal e a sua filha Tatum. A sua brilhantíssima estrela em Hollywood começou a murchar logo a seguir, com os fracassos comerciais e críticos sucessivos de “Daisy Miller” (1974), um veículo para a sua namorada Cybill Shepherd (pela qual se tinha divorciado da sua mulher e colaboradora, a diretora artística e produtora Polly Platt), do musical “Amor Eterno” (1975) e da formidável comédia sobre os primórdios do cinema mudo americano, “O Vendedor de Sonhos” (1976).

[“Lua de Papel”:]

A sua carreira nunca mais recuperou, mas Bogdanovich continuou a rodar e assinou vários bons filmes, alguns deles ao jeito da Hollywood clássica que tanto admirava, defendeu e representou a herança, caso de “Noites de Singapura” (1979), o citado “Romance em Nova Iorque”, penúltimo papel de Audrey Hepburn, “Máscara” (1985), “Texasville” (1990), mal-amada mas digníssima continuação de “A Última Sessão”, o hilariante “Apanhados no Acto” (1992), sobre a peça de Michael Frayn, ou “O Miar do Gato” (2001), sobre a história real do assassínio do produtor, realizador, argumentista e actor Thomas Ince no iate de William Randolph Hearst, em 1924. O seu último filme foi uma farsa à moda antiga, “Ela É Mesmo… o Máximo” (2014), e teve Wes Anderson e Noah Baumbach, grandes admiradores de Bogdanovich, entre os produtores.

[“Amor em Nova Iorque”:]

Entre os seus documentários, contam-se o clássico “Directed by John Ford” (1971), e “The Great Buster” (2018), uma celebração do génio de Buster Keaton. Peter Bogdanovich foi ainda a grande força por trás da salvação e do restauro de “O Outro Lado do Vento”, de Orson Welles, em que também participa como ator. Aliás, originalmente, Bogdanovich queria ser ator e estudou representação no Actors Studio, nos anos 50, na sua Nova Iorque natal. Como actor vimo-lo, nomeadamente, em “Os Sopranos”. Nos seus últimos anos de vida, manifestou-se muito pessimista em relação ao futuro do cinema, sobretudo do americano, e da cinefilia. “É triste que a grande maioria dos espectadores de hoje não conheçam nenhum filme feito antes de “Guerra das Estrelas””, disse numa entrevista recente.

Por tudo aquilo que fez pelo cinema e no cinema, que amava e conhecia profundamente, e pela sua devoção inabalável aos maiores da era de ouro do cinema americano, Bogdanovich devia ser feito santo laico: São Peter Bogdanovich, padroeiro dos cinéfilos.