O regime presencial voltou a recomendar-se e vale a pena decorar esta abreviatura em língua inglesa, habitualmente usada em videojogos e redes sociais: irl, ou in real life. Mas se a vida real como a conhecemos até aqui vai ensaiando o seu regresso a 100%, a expressão digital dificilmente se verá confinada. Na Semana da Moda de Nova Iorque, que viu desfilar até esta quarta-feira as propostas dos designers para o próximo outono-inverno, que o digam os hologramas em tamanho XXL da Maisie Wilen, em parceria com a Yahoo. Mas não faltam resquícios analógicos num ano em que a bússola volta a ser um precioso aliado. A Coach faz pontaria a um subúrbio à procura de norte, a Saint Sintra desafia-nos para um baile excêntrico, e há quem tenha o rumo bem afinado. Farto de chinelos e excesso de descontração, Michael Kors diz adeus ao tédio da vida doméstica e serve confiança, Jason Wu acena com um vestido de cocktail, e da Khaite a Peter Do renovam-se as declarações de amor ao poderoso fato, maleável em toda a criatividade aplicada. Siga 10 destaques saídos das passarelles.

Peter Do

Para muitos, pode ser difícil imaginar o regresso a uma vida estruturada, com a forma a revelar-se em peso nos preceitos da alfaiataria que a pandemia conduziu ao armário. Mais de dois anos de restrições depois, com a desconstrução a acampar em força em cada reduto de teletrabalho, Peter Do redefine prioridades.  “Foundation” é a sua coleção mais pessoal  até à data, porque uma pitada de egocentrismo também é importante para triunfar num palco pós-pandémico. Se o corte se mantém trave-mestra inabalável, a fluidez oversize e as silhuetas alongadas garantem sintonia absoluta com uma rotina que se quer livre de pijamas  e abraçar o binómio fato-calça/saia sem receio de cair em velhos e aborrecidos espartilhos. “Quis ser mais egoísta esta estação”, confessou o designer nos bastidores à Vogue. “Quis fazer moda o mais pessoal possível para mim. Gosto mesmo do fato. Gosto do facto de levar tempo a ser feito, de não precisarmos de comprar muitos, e de que se torna o nosso porto seguro quando encontramos um bom”, completou. É oficial, há uma nova e confortável armadura pronta para arrebatar um outono-inverno pronto a vestir e repetir.

6 fotos

Khaite

Baralhar, voltar a dar e auscultar a renovada relação entre moda e celebridades. O efeito Kendall Jenner, por exemplo, voltou a fazer-se sentir em janeiro quando a manequim foi fotografada pelos paparazzi a usar um casaco da Khaite em Aspen. O impacto na marca lançada em 2016 por Catherine Holstein foi tão rápido como rápido é o efeito do calor abrasador no desprevenido gelo: num ápice, havia uma lista de espera de 140 pessoas para comprar uma peça que custa qualquer coisa como 12 mil dólares, prenúncio de que o mundo do consumo de luxo também é composto de mudança. Afinal de contas, esta é uma etiqueta jovem, algo que não impede — com o devido cunho emocional à mistura — que se torne objeto de desejo repentino e que se vejam normalizadas as transações avultadas. A fórmula dos cinco dígitos segue o seu caminho na coleção outono-inverno, fiel aos alicerces: pele, caxemira, denim e alfaiataria, com toque oversize, e sem versões rigorosas ou excessivamente tradicionais.

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Brandon Maxwell

Um acontecimento que arrancou com Siri a ler a página de Wikipedia do designer, e ainda uma homenagem à avó de Brandon Maxwell, que morreu de alzheimer. Talvez tenha sido este um dos desfiles mais pessoais do criador, habituado a recrutar top models e glamour — quem se esquece da aparição de Lady Gaga na Met Gala de 2019, com os seus cinco exuberantes looks pré-pandemia fiéis à estética camp? Neste caso, Maxwell revela-se mais terra a terra, que é o mesmo que dizer perfeitamente vestível, entre denim, sweater dresses, velhas clutchs e joalharia que revisita um estimado baú.

© Brandon Maxwell/ Nwe York Fashion Week

Proenza Schouler

Qual relíquia fúnebre que se enterra nos confins da era Covid-19, a marca criada há vinte anos pelos designers Jack McCollough e Lazaro Hernandez arruma em absoluto com a indolência das longas temporadas dentro de portas. No cenário da Brant Foundation, ao som de um quinteto de violinos, a pauta da próxima estação fria escreveu-se com cinturas marcadas à medida que os corpetes desconfinam sem pudores. Porque há uma formalidade que volta a apresentar-se ao serviço, o cai-cai reergue-se para medir forças com o conceito de efortless, e o volume é esculpido ao pormenor.

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Coach

O receituário de Stuart Vevers para a Coach inclui muito outerwear: neste caso, o espírito lumberjack(et) cruza-se com o ultra romântico num avanço outonal proposto pela marca nova-iorquina, que pelo caminho pisca o olho ao new kid on the block Angus Cloud. Estranho? Pois sim, mas também os tempos são caóticos e o guarda-roupa é o primeiro dos primeiros a absorver a toada. As carneiras cruzam-se com o grafismo do duo californiano Mint & Serf, a bombazine ganha terreno sem descriminar género, os bonés acrescentam nota de descontração (ou desnorte?) e os vestidos hiper femininos interrompem a cadência para de novo nos fazer puxar da bússola — estamos perdidos, está tudo bem com isso, e ainda temos fôlego para cobiçar os detalhes — ah, os omnipresentes leather goods, uma das irredutíveis bandeiras da casa.

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Ulla Johnson

Se há ensinamento retirado desta edição em solo norte-americano é que nem só de pesos pesados e cabeças de cartaz vive um certame de moda que procura o figurino mais confortável para envergar numa galáxia em transformação. Mas há hábitos que não mudam: o mundo em geral, e a América para este particular, continuam a gostar de histórias de sucesso. Inspirada pelo trabalho da artista têxtil colombiana Olga de Amaral, Ulla Johnson é um desses casos por estes dias, servindo uma verdadeira aula de sobreposição de camadas a partir da Biblioteca Pública de Nova Iorque. Entre as esculturas de Alma Allen e uma performance de PawPaw Rod, mostrou como “a ideia de textura atravessa toda a coleção, dos tops peplum e calças feitas a partir de desperdício de pele e crochet, às blusas metálicas e casacos de carneira”, descreveu à Vogue. No plano dos acessórios, há joias concebidas a partir de vidro reciclado, em parceria com um grupo de artistas de Nairobi, elevando o nível táctil dos looks.

Saint Sintra

Situe-se num circo repleto de atrações saídas dos anos 90, com a devida dose de old school e novas ambições românticas. Para Sintra Martins, designer baseada em Brooklyn, o misto de estranheza e lugar de abrigo expressa-se através da Saint Sintra, a marca feminina que deambula por paisagens nostálgicas e se ajusta a diferentes corpos — e em que há quase sempre algo de sexy e endiabrado num guião povoado de têxteis que renascem em peças de alfaiataria. Ora num registo mais ready to wear, ora numa versão que parece saída de um armário pronto para o Halloween. Como em tudo na vida, a atitude faz a diferença, e uma Onion Bride (por favor atente na primeira imagem) é só para quem sabe descascar a coisa e chorar por mais.

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Maisie Wilen

Cada vez mais cercados pelo Metaverso, Maisie Schloss, designer fixada em Los Angeles cuja marca Maisie Wilen é inspirada no nome de solteira materno, ataca no plano online e na tal vida real.  A parceria com o Ryot Lab da Yahoo permitiu à criadora lançada por Kanye West (que já vestiu Kim Kardashian, Bella Hadid ou Kylie Jenner e chegou aos ecrãs através do guarda-roupa de “Euphoria”, da HBO) apresentar enormes hologramas. Algures entre o humano e o elfo, num momento em que as fronteiras entre universo físico e montras digitais estão em cima da mesa, fez desfilar vestidos, casacos e o cut out denim, numa encenação que contou ainda com uma série de QR e outros potenciadores da experiência de compra

Jason Wu

Se dúvidas houvesse de que o desaire de uns é o sucesso de outros, a confirmação nos bastidores rematava o assunto de vez do ponto de vista do negócio em biénio de pandemia. “O ano passado foi o melhor em toda a nossa história”, esclarecia Jason Wu. O designer que cria roupa elegante para momentos elegantes desfaz alguns mitos de sobriedade associados à Covid-19. “As mulheres só querem sentir-se bonitas”, frisou à Vogue, racionalizando esse muitas vezes intrincado processo de escolha e compra. Com o desconfinamento a seguir em passo seguro, Wu seria o último dos últimos a retardar a sua marcha. As ilustrações saídas dos anos 50 dão o mote, a elegância impera mesmo quando um camisolão emparelha com uma saia puffer, os vestidos de cocktail não faltam à chamada, sem vergonhas, e há um detalhe para decorar: laços, muitos laços.

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Gabriela Hearst

Era difícil chegar ao fim deste balanço fintando as preocupações de género, ou de como esbater separações continua a fazer parte da agenda das Semanas de Moda. Inspirada pelas filhas adolescentes, Gabriela Hearst admite que o velho estaticismo há muito que deixou de fazer escola entre os mais jovens. “Os miúdos só querem ser livres”, chegou a dizer no preview da coleção que prova que a vaga trans e andrógina é cada vez menos um conceito de nicho — para não falar da diversidade de corpos na passerelle. E o outono nunca se quis tão amarelo.