Esta quinta-feira ao amanhecer, milhares de moradores de Kiev começaram a abandonar a cidade, atingida durante a madrugada pela artilharia russa, provocando filas de quilómetros e entupindo os principais acessos à capital ucraniana. “Todo esse tráfego está a dirigir-se numa direção … conduzindo o mais rápido possível para oeste em direção às áreas mais seguras do país, se lhes pudermos chamar assim, talvez em direção à Polónia, que fica a três ou quatro ou cinco horas de carro a partir daqui. Vê-se que é quase um fluxo constante de tráfego os residentes deste país a deslocarem-se em direção ao oeste, na direção oposta à da Rússia“, descreveu Matthew Chance, um dos repórteres da CNN enviados para aquele país.

Ao telefone com a CNN, durante uma viagem de táxi rumo à embaixada portuguesa em Kiev, para tentar sair do país, Dária Papchenko, luso-ucraniana de 23 anos, fez um retrato idêntico: “As pessoas estão em pânico, as prateleiras dos supermercados estão vazias e há filas de 15 quilómetros nas bombas de gasolina, pois todos querem ir embora de carro. Nas farmácias é o mesmo cenário: filas muito grandes”.

“Quero que os meus pais saiam de Kiev para alguma aldeia, porque em breve haverá bombardeamentos”, disse Alex Svitelskyi, de 31 anos, à reportagem da BBC, que o interpelou enquanto passeava o cão nas ruas da capital. Ao Guardian, na emblemática Praça Maidan, Viktor Alexeyvich, mais velho, recordou o acordar abrupto, pelas 5h da madrugada, com as primeiras explosões, e explicou que não tenciona abandonar Kiev. “Vou levar o meu neto para fora da cidade. E depois volto”, disse. “Não tenho armas, mas estou pronto a defender o meu país. Talvez a guarda nacional ajude.”

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Como ele, também Mark, 27 anos, vendedor e um dos 900 mil reservistas do exército ucraniano, garantiu à BBC estar pronto para pegar em armas, tal como o presidente Volodymyr Zelensky pediu esta manhã num discurso à nação. “Isto é guerra. Não há outra forma, temos de defender o nosso país. E, talvez, morrer nesta guerra”, disse ao repórter, depois de contar que minutos antes tinha ajudado uma rapariga, em lágrimas, a procurar abrigo numa das estações de metro da cidade.

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Os que não conseguiram ainda sair de Kiev, ou não tencionam fazê-lo, aglomeraram-se em filas: para levantar dinheiro nos multibancos; para se abastecerem de víveres nos supermercados; para atestarem os carros; e para entrarem nas estações de metro, convertidas esta manhã em bunkers improvisados.

Com as cancelas abertas, foram inúmeras as pessoas que se refugiaram nas estações. “Uma pessoa começa a correr, outra segue-a e depois toda a multidão corre para uma estação de metro, que é o abrigo mais próximo de ataques aéreos”, descreveu outro repórter, da lituana LRT. Há famílias inteiras nas estações de metro, grupos de jovens, algumas pessoas começam a organizar-se, a formar grupos e a distribuir mantimentos, relata a CNN. Um casal com um filho de dois anos, olhos postos nas notícias nos telemóveis, questionado pela BBC, não conseguiu articular mais do que uma pergunta em inglês: “Onde está a NATO?”.

Irina vai abrigar-se com os filhos num mosteiro em Sloviansk: “Pelo menos lá há catacumbas onde nos podemos esconder”

Nos últimos dias, as autoridades ucranianas divulgaram à população a lista de abrigos anti-bomba na cidade de Kiev. Era na direção de um deles que seguia Svetlana, funcionária numa escola, com o saco que preparou rapidamente, depois de ser acordada pelas explosões e de confirmar com uns amigos da Crimeia: “É guerra”, disseram-lhe eles. Lá dentro, levava produtos de higiene e o computador, para poder continuar a trabalhar no mestrado em Psicologia, explicou à BBC. “Não sabemos o que fazer agora, vamos para um lugar onde possamos estar em segurança”, disse, visivelmente nervosa e assumidamente preocupada com os pais, que moram em Mariupol. “Não consigo dizer tudo aquilo que sinto, mas estou muito, muito nervosa. Estou muito assustada.”

A britânica Sky News divulgou imagens de civis em lágrimas justamente nas ruas de Mariupol, cidade no leste ucraniano, no Óblast de Donetsk, a apenas 20 quilómetros da fronteira com a Rússia. “Temos de sair das nossas casas. O que está a acontecer?”, grita uma mulher, de olhos mareados, seguida por um homem, com um saco de viagem na mão. Assim que Vladimir Putin anunciou a invasão da Ucrânia, foram ouvidas várias explosões na cidade portuária, que em 2014 chegou a ser tomada por separatistas russos.

“Estou sozinha no trabalho. Para onde é que eu fujo? Para onde é que eu hei-de ir? Digam-me, por favor”, soluça outra mulher, desesperada, perante a câmara de televisão. No enquadramento surgem militares fardados, que não intervêm. “Não há abrigos, não há nada, isto é um espaço aberto. Onde é que vamos esconder as crianças?”, questiona uma terceira mulher, mais calma, acompanhada por várias crianças.

Em Sloviansk, cidade na mesma região mas cerca de 240 quilómetros a norte, o New York Times testemunhou o êxodo de inúmeras pessoas, logo às primeiras horas da manhã, após uma madrugada de explosões. Irina Shevtsova, de 32 anos, explicou que ia com os dois filhos pequenos procurar refúgio num mosteiro da cidade, que em 2014 também foi palco de confrontos. “Pelo menos lá há catacumbas onde nos podemos esconder”, disse a mulher, sem evidenciar sinais de pânico.

De acordo com a reportagem no local, várias pessoas recordaram o conflito de 2014, durante o qual procuraram abrigo em caves, e disseram que acreditam que desta vez pode ser diferente, com Sloviansk a passar ao lado da guerra propriamente dita. “Vão atacar Kiev e Dnipro, sítios importantes com aeroportos”, disse Lilya Solyak, funcionária de um hotel local. Lera Alekseeva, outra moradora da cidade, garantiu que também não faz tenção de abandonar a sua casa e que a primeira coisa que ia fazer esta quinta-feira era apresentar-se ao trabalho, numa empresa de venda e reparação de máquinas registadoras. Ainda assim, concedeu, ia levar o gato e o cão consigo, pelo sim, pelo não.

Também de Kharkhiv, outra das cidades atingidas esta madrugada por mísseis russos, chegam relatos de pânico e de tentativa de fuga, com centenas de pessoas a concentrar-se na estação de comboio para comprar bilhete e fugir para leste.

Em Lviv, testemunhou o repórter do New York Times na cidade no oeste da Ucrânia, junto à fronteira com a Polónia, só dois hóspedes não fizeram check-out do Citadel Inn, um hotel de cinco estrelas a funcionar no edifício de um antigo forte militar do século XIX. Apesar da proximidade com o país vizinho, que quase todos os que estão a abandonar a capital ucraniana tencionam alcançar, muitos destes hóspedes estarão a fazer o trajeto inverso, confirmou Denys Derchachev, o porteiro: “Têm medo pelas suas famílias, têm medo pelos seus amigos”.

Um dos hóspedes que decidiram ficar, um empresário com negócios em Kiev e Odessa, disse que pretendia prolongar a estadia em Lviv durante mais uma semana, pelo menos. Está com a família, estão mais seguros ali do que na capital. “Estão a escrever-me e a perguntar para onde podem ir, onde existe um lugar seguro”, revela, depois de explicar que, naquelas duas cidades, tem cerca de 600 funcionários a cargo. “O que é que lhes posso dizer? Digo-lhes para ficarem em casa e encontrarem um lugar seguro.”

[O dia em que a guerra começou. Como o poderio russo está a abater-se sobre a Ucrânia:]