Debaixo dos sacos de areia empilhados no centro da Avenida Prymorskyi, em Odessa, uma estátua de bronze vai sobrevivendo aos ataques das forças militares russas no sul da Ucrânia que esta semana, quase com um mês de guerra, começaram a bombardear a cidade a partir do Mar Negro. Em torno do seu pedestal de granito rosa polido, há três placas de latão, cada uma delas com figuras da mitologia romana em baixo relevo: Mercúrio, que representa o comércio; Saturno, que simboliza a agricultura; e a deusa romana Iustitia, ou Justitia, a da justiça.

Uma quarta placa, de bronze, revela a identidade do homem vestido com uma toga romana e coroado com folhas de louro que protagoniza a obra. É Armand-Emmanuel de Vignerot du Plessis, duque de Richelieu, que se tornou major-general sob o império de Catarina, A Grande — a poderosa imperatriz da Rússia de 1762 a 1799; e que, já na liderança de Alexandre I — imperador de 1801 a 1825, e o primeiro russo a ser rei da Polónia e grão-duque da Finlândia — foi governador da cidade entre 1803 e 1814. Era francês.

O duque de Richelieu, que fugiu da Revolução Francesa, é considerado um dos fundadores de Odessa por ter apoiado a imperatriz na batalha contra a Turquia, que resultou na anexação deste território à Rússia no Tratado de Jassy. Por isso, a primeira estátua a ser construída na cidade é precisamente a que o homenageia.

Há outros quatro fundadores reconhecidos por Catarina, A Grande, todos representados noutro monumento em Odessa que tem a imperatriz como figura central: o espanhol José de Ribas, militar que serviu o exército da Rússia; o belga François Sainte de Wollant, engenheiro que supervisionou a construção de fortes na Rússia Imperial; o russo Platon Zubov, um protegido da imperatriz que liderou a Frota do Mar Negro; e Grigory Potemkin, outro russo protegido de Catarina, que além de Odessa a ajudou a fundar também Kherson.

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E quanto mais se escava nas raízes de Odessa, mais pistas se encontram para a multiculturidade que vibrava nesta cidade ucraniana antes da invasão da Rússia. Em meados do século VI a.C., Odessa estava ocupada por uma colónia grega que ali construiu uma necrópole. Séculos depois, o duque de Richelieu descrevia a cidade como uma cidade onde “se pode cheirar a Europa”: “Fala-se francês e há obras e revistas europeias para ler”. Essas influências francesas, aliás, sobreviveram à passagem do tempo: Odessa é muitas vezes chamada como “Pérola do Mar Negro” ou a “Cannes da Ucrânia”.

De acordo com a UNESCO, de que é património, Odessa é a única cidade na Ucrânia a preservar inteiramente a “estrutura urbana de uma cidade portuária multinacional do sul, típica do final dos séculos XVIII e XIX”. A fachada do Teatro Académico Nacional de Ópera e Balé de Odessa, o maior marco turístico da cidade, foi construído ao estilo barroco italiano; e a sala de espetáculos recupera a arquitetura dos tempos de Luís XVI. A Escadaria de Potemkin, os 192 degraus que ligam o porto à estátua do duque de Richelieu, foi desenhada pelo arquiteto italiano Francesco Boffo, em parceria com outros dois arquitetos de São Petersburgo.

A atmosfera europeia que faz recordar as cidades banhadas pelo Mediterrâneo, as águas quentes do Mar Negro, as praias de areia branca e as temperaturas amenas — em agosto chega aos 25ºC — fazem de Odessa o destino preferencial para férias das personalidades mais ricas da Europa de Leste (oligarcas russos incluídos). De verão, sim, mas não só: a cidade ucraniana tem uma das clínicas de intervenção oftamológicas mais famosas do mundo e vários resorts terapêuticos com spas.

Agora, todos os cenários idílicos de Odessa estão a ser cobertos por panos brancos, tapados com sacos de areia e barricados por obstáculos nas estradas para travar o avanço dos russos. Os ucranianos enterraram minas terrestres à beira-mar para impedir o sucesso das frotas anfíbias da Rússia, e a cidade tem sido das mais poupadas nos ataques aéreos. Considerada a capital do humor, os ucranianos têm-se defendido também mudando (com palavrões pelo meio) os sinais de trânsito, para enganar as tropas russas que possam chegar por terra.

Em Odessa há palavrões nos sinais de trânsito e (muito) humor para enganar os russos

Mas a ameaça está à porta e as sirenes que soam quase diariamente provam-no: depois de Mariupol ter sido destruída, Kherson, outra cidade portuária da Ucrânia, já foi tomada. Falta Odessa, para se fechar o círculo estratégico de acesso pelo Mar Negro e os bombardeamentos desde navios ao largo ou a partir da Crimeia já começaram.