No ano passado, algo de surpresa, surgiu “Inside”, um novo especial do comediante Bo Burnham na Netflix. Um especial diferente dos outros, tudo acontece num anexo da sua casa em Los Angeles, num estúdio improvisado que criou para compor, gravar, testar, filmar, irritar-se e exorcizar demónios do confinamento. O resultado tem os seus momentos altos, rapidamente se percebe que vai além do artifício do confinamento e está muito presente uma questão de sobrevivência criativa – e não só. Em paralelo, há uma empatia pelo isolamento e aos estados a que nos leva. Não foi incomum encontrá-lo nos melhores programas do ano passado. O documentário “Charli XCX: Alone Together”, também do ano passado, que está agora disponível na plataforma Filmin, mostra a luta contra demónios semelhantes, com o mesmo estilo de exercício criativo.
Com uma grande diferença: a cantora britânica não está sozinha em casa e, em simultâneo, expõe o processo de criação com os fãs, uma comunidade online denominada The Angels. Na casa de Charli estão os seus dois managers, amigos de longa data que trouxe do Reino Unido e com quem vive, além do namorado, Huck Kwong, um H&R com quem tem uma relação – na altura – há sete anos mas, dizem, nunca passaram mais de onze dias juntos, por causa da vida agitada da cantora. O período de confinamento é também um capítulo novo na sua relação, que terá alguma importância no documentário, mas não tanto como se julga.
[o trailer de “Charli XCX: Alone Together”]
Tal como Bo, Charli XCX percebe que uma forma de vencer a ansiedade, o abandono e o isolamento é criar. Tal como Bo, tenta fazer isso através de um processo novo. Montar um mini-estúdio em casa e fazer tudo a partir de uma sala, com ajuda à distância. Ao contrário de Bo, Charli XCX tem de aprender quase todos estes processos e, também ao contrário dele, ela resolve colocar uma data para o projeto ser lançado: 15 de maio de 2020. Propunha-se a gravar um álbum novo e a lançá-lo em seis semanas.
Esta é a história de How I’m Feeling Now, o quarto álbum de originais da cantora, finalista do Mercury Prize desse ano e para o qual “Charli XCX: Alone Together” nem é bem um making-of, porque, como se percebe ao longo do documentário, o verdadeiro making-of foi experienciar a feitura do álbum em tempo real. Como objeto do seu tempo, o documentário é a história de resistência de uma artista, de quem lhe estava próximo e dos seus fãs durante a pandemia.
Charli sofreu dores de crescimento. Tal como muitas artistas pop da sua geração – e não só – a dado momento perdeu o controlo da carreira e, como a própria diz no início, cantou coisas que não eram suas. Nesse processo de reencontro próprio, tornou-se um ícone para a comunidade LGBTQ+, onde tem uma grande legião de fãs, com quem comunica de um modo quase direto. Além disso, é ativista pelos direitos dessa mesma comunidade. Depois de um crescimento abrupto no arranque da carreira, nos últimos anos Charli XCX voltou a ter a vida de jovem adulta que julgava ter perdido. Charli XCX fez a viagem sem retrocesso. Percebeu a tempo que a tinha de fazer.
A criação de “How I’m Feeling Now” e este documentário são também parte desse trabalho, de uma artista que percebe que parte da sua identidade existe por causa dos fãs. E é com eles que inicia uma espécie de colaboração, pedindo ideias para diferentes dinâmicas criativas, que culminariam no álbum. Com isto não estava apenas a envolver os fãs, estava também a dar-lhes um motivo para fugir ao isolamento, a instigar-lhes a criação como um escape essencial.
A criação de Charli XCX nunca se sente como solitária. Apesar de falar muito dos seus demónios, eles nunca são só seus: ao contrário do que acontece, por exemplo, com o especial de Bo Burnham. Quando muito, sente-se como intensa, a própria assume a dado momento que isto de estar sempre a ser filmada, a partilhar o processo criativo, é esgotante. Também quebra — e essa quebra faz parte do processo.
É um objeto que espelha um tempo muito particular, que ajuda a compreender um momento, a descodificar a forma como a contenção forçada motivou uma evolução, tudo por necessidade. No final do documentário, ainda com semanas de confinamento no horizonte, a cantora mostra-se ansiosa porque não sabe o que fazer a seguir. Um novo álbum é sugerido como piada, uma piada que é e que não é, sobretudo para ela, que às tantas assume que tem problemas em identificar-se para lá daquilo que faz (e houve novo álbum, Crash, editado neste início de 2022). “Charli XCX: Alone Together” é um bom exercício de justificação de identidade, que ultrapassa a questão geracional ou até de gosto.