Imaginem um filme situado na Islândia viking, com uma história que tem as linhas gerais da do “Hamlet” de Shakespeare (que foi beber à “Gesta Danorum” de Saxo Grammaticus), e narrativa e visualmente é aparentado com  “Conan e os Bárbaros”, de John Milius e “O Último Viking”, de John McTiernan, mais uns pozinhos do “Parsifal” de Syberberg e do “Andrei Rublev” de Tarkovsky. Esta descrição dá apenas uma ideia aproximada de “O Homem do Norte”, de Robert Eggers, o autor do tenebroso “A Bruxa” e do lovecraftiano — mas rebuscado — “O Farol”, e que se inspira na lenda islandesa de Amleth para nos dar um filme que é todo ele uma visão tétrica, febril e palpitante de aço, sangue, fogo e magia, tutelada pelos ancestrais deuses nórdicos.

“O Homem do Norte” passa-se no século IX. O jovem príncipe Amleth (Oskar Novak) assiste ao assassínio do pai, o rei Aurvandil (Ethan Hawke) pelo irmão bastardo deste, Fjolnir (Claes Bang), que depois rapta a sua mãe, a rainha Gudrun (Nicole Kidman). Amleth consegue fugir aos soldados do tio que o querem também eliminar e reencontramo-lo anos mais tarde, já adulto (agora interpretado por Alexander Skarsgard), transformado num temível guerreiro “berserker” de uma horda viking que se dedica a matar, pilhar e fazer escravos no Leste, e completamente anestesiado pela violência.

[Veja o “trailer” de “O Homem do Norte”:]

Um dia, depois de um combate sangrento e da tomada de uma vila na região do Rus (qualquer paralelo com a atual situação na Ucrânia é mera coincidência), Amleth encontra uma feiticeira (Björk, indescritível) que lhe recorda a sua linhagem nobre e o incita a vingar o pai e matar Fjolnir. O guerreiro desperta então para a sua identidade e origem, deixa a horda escondido no meio de um grupo de escravos, do qual também faz parte Olga (Anya Taylor-Joy, alva como a lua), que diz ter poderes de feiticeira e pela qual se apaixona, rumando ao país da sua infância decidido a resgatar a mãe das mãos do tio assassino e usurpador, e a matá-lo.

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[Veja uma entrevista com Robert Eggers:]

Robert Eggers, que escreveu o argumento com o poeta, romancista e letrista Sjón (também co-autor do recentemente estreado “O Cordeiro”), amplifica e enfatiza em “O Homem do Norte” o interesse que já havia demonstrado em “A Bruxa” e “O Farol” pelas lendas e pelo folclore europeu, pelo oculto e pela literatura fantástica, assinando um filme que combina a espectacularidade das grandes produções de época tradicionais, a autenticidade histórica e o sobrenatural pagão. Eggers e Sjón disseram que queriam fazer “o” grande filme sobre vikings, e “O Homem do Norte”, se não o é, anda lá muito, muito perto.

[Veja uma entrevista com Alexander Skarsgard e Anya Taylor-Joy:]

Este “Hamlet” reduzido ao essencial (a história de vingança familiar), verosímil no retrato da vida, da mentalidade e dos rituais dos vikings (com uma ponta de fantasia aqui e ali) e transportado pelo fôlego aventuroso, violento e fantástico das narrativas nórdicas milenares, é filmado por Eggers e pelo seu diretor de fotografia Jarin Blaschker com uma ampla e impressiva paleta visual, um extraordinário aproveitamento dramático das paisagens vulcânicas e desoladas da Islândia, e dos campos e bosques da Irlanda, os dois países onde decorreu a rodagem, e um sentido poderosamente gráfico das texturas. Há sequências em que, ao invés de filmado, “O Homem no Norte” parece ter sido traçado a carvão, desenhado a tinta-da-china ou gravado a água-forte.

[Veja uma sequência do filme:]

“O Homem do Norte” é um filme de água, erva e neve, sangue, tripas e aço, trevas, lava e cinzas vulcânicas, carne ferida e ossos esmagados, ao mesmo tempo brutalmente realista e austeramente sobre-humano, que mostra com pormenor e verosimilhança como os vikings viviam, combatiam e prestavam culto. Mas também onde as raposas e os corvos ajudam o herói na sua senda vingadora, é necessário enfrentar um morto-vivo numa noite de lua cheia para ficar de posse de uma espada mágica, e pelo qual Odin e Freya podem irromper para levarem um guerreiro morto para o Valhala. E tudo empapado na banda sonora em transe épico-alucinogénico de Robin Carolan e Sebastian Gainsborough.

Não há sinal de um capacete com chifres nem de um anacronismo politicamente correto que borrem a pintura toda, e os atores habitam as suas personagens com uma convicção enérgica e intensa, que acrescenta à febrilidade da ação. E apesar dos pontos de contacto entre “O Homem do Norte” e o “Hamlet” de Shakespeare serem quase apenas temáticos, Robert Eggers proporciona a Heimir (Willem Dafoe), o bobo (e feiticeiro residente) da corte do assassinado rei Aurvandil, um “momento Yorick” místico-macabro que dificilmente esquecerá. Um dos grandes filmes do ano, feito totalmente à revelia da produção formatada e da ideologia hoje dominantes em Hollywood.