O recinto do Marés Vivas, festival agendado para julho em Vila Nova de Gaia, contém vestígios arqueológicos “com pelo menos mais de 300 mil anos”, alertou esta quinta-feira um especialista em arqueologia pré-histórica que pede “máxima vigilância e preservação do espaço”.

“O local está assinalado como sítio paleolítico e as intervenções [referindo-se ao festival, bem como a projetos futuros para o local] não são incompatíveis com o que lá existe, mas tem de haver alguma vigilância. Não pode ser construído um palco em cima de uma anta. Tem de haver garantias de que o sítio é estudado primeiro”, disse Sérgio Monteiro Rodrigues.

Professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) e especialista em arqueologia pré-histórica, Sérgio Monteiro Rodrigues descreveu o local como “único”, por ser um “sítio com vestígios da presença humana muito antigos que devem ser superiores a 300 mil anos, pelo menos”.

Em causa está a Estação Paleolítica do Cerro localizada no antigo parque de campismo da Madalena, em Vila Nova de Gaia, no distrito do Porto, local onde vai realizar-se o MEO Marés Vivas, de 15 a 17 de julho, festival que tem como cabeças de cartaz Bryan Adams, Maluma e Anitta.

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Adiado por dois anos devido à pandemia da covid-19, o Marés Vivas realiza-se desde 1999 em Vila Nova de Gaia, tendo passado já por várias localizações e enfrentado polémicas e críticas de associações ambientalistas.

O espaço onde vai realizar-se este ano é, de acordo com um comunicado divulgado a 21 de junho pela promotora do evento a PEV Entertainment, cinco vezes maior do que o anterior recinto.

Trata-se de um espaço que atualmente pertence ao Fundo Especial de Investimento Fechado Gaia Douro na freguesia da Madalena e para o qual está projetada a construção de um parque tecnológico.

A proposta sobre a disponibilização do espaço para a realização do festival foi discutida e votada em reunião camarária a 20 de junho.

Em declarações à agência Lusa, o docente da FLUP salvaguardou que a realização de eventos ou construções futuras “não colide” com o património arqueológico existente no local, mas sublinhou o apelo à “vigilância”.

“Do ponto de vista formal, o sítio está preservado. Se os procedimentos normais se cumprirem, não há problema nenhum. O PDM [Plano Diretor Municipal] de Vila Nova de Gaia tem os vestígios assinalados e o local está registado na base de dados nacional. Mas não há ali nenhum castelo medieval, nem nenhuma ruína medieval, não há paredes, nem muros, portanto, até por falta dessa estrutura pode não se perceber a importância do local. O operador de uma máquina, se o mandam terraplenar algo, ele obedece sem fazer ideia do que está ali”, alertou o docente.

À Lusa, Sérgio Monteiro Rodrigues, que foi quem encontrou nos anos 80 este sítio arqueológico, mostrou preocupação com o facto de Gaia ser “dos poucos municípios em Portugal que não tem um gabinete de arqueologia”.

“Não estou a dirigir o discurso contra ninguém em particular. Isto é um facto, uma realidade transversal a várias governações em Gaia”, concluiu.

Sobre esta estação arqueológica, o especialista assina individualmente, e com outros, vários artigos que falam da existência de uma mamoa e de depósitos de formações marinhas.

“O homem ocupou essas praias e deixou ali vestígios. O que nos importa é registar os vestígios e recolher o material. A partir daí o sítio pode até ser destruído a menos que se encontre uma anta ou uma muralha, o que exige outro tipo de proteção e abordagem”, referiu.

Já num artigo publicado em 1991 numa revista da especialidade da FLUP, lê-se que, “entre os diversos achados realizados, desde logo se destacou a descoberta, em 1988, de várias dezenas de objetos líticos no lugar do Cerro”.

“Não só o seu número revelava uma assinalável concentração de vestígios, como também a sua presença podia ser relacionada com uma pequena cascalheira parcialmente destruída pela abertura de um estradão. O facto de para o local das descobertas estar prevista a construção de um parque de campismo, desde logo tornou premente a realização de sondagens que permitissem avaliar a sua real importância arqueológica”, lê-se no artigo assinado por Sérgio Monteiro Rodrigues e por João Pedro Cunha-Ribeiro.

A agência Lusa contactou a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) e aguarda resposta.

Já a Câmara de Vila Nova de Gaia confirmou a existência de uma estação paleolítica no local e garantiu que esta está “obviamente devidamente protegida e salvaguardada nos instrumentos de planeamento”.

Referindo que o terreno em questão tem a área superior a 21 hectares, a autarquia disse que a estação paleolítica ocupa “uma pequena parte desse espaço”.

“As eventuais escavações serão definidas pelos proprietários e pela tutela, estando a Câmara Municipal interessada em que as mesmas se realizem. Note-se que a estação paleolítica convive, há décadas, com um parque de campismo e autocaravanismo, sem que alguma vez tenha sido posta em causa a estação”, lê-se na resposta escrita enviada à Lusa.