Estávamos em 1983. Portugal enfrentava uma crise económica que o levou a ser intervencionado, pela segunda vez, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Foi também neste ano que chegou a Portugal um novo e temido vírus: o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). Muito associado aos homossexuais, criou, desde logo, estigma na população. Hoje, quatro décadas depois do primeiro caso de VIH no mundo, o que se sabe sobre ele? Como se vive com VIH em Portugal?

O impacto dos primeiros casos em Portugal

Se até 1974, o ambiente homossexual em Lisboa era bastante fechado e socialmente discriminatório, depois da Revolução de Abril, a comunidade gay começou por sentir uma certa “democratização”. Os mais jovens acabavam por ser os que tinham menos complexos com a sua orientação sexual, frequentando a noite e bares gay da época. Passou a haver mais locais gay-friendly na capital, e o sentimento de liberdade começou a surgir, cada vez mais, também no seio desta comunidade. Até que em 1983, algo mudou, aquando do aparecimento no país dos primeiros casos de VIH — o vírus causador da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA). Tal como nos Estados Unidos da América (EUA) — onde foi identificado o primeiro caso de VIH —, também em Portugal este vírus começou a criar estigma para a comunidade homossexual, o que ainda hoje acontece — apesar de o último Relatório Infeção VIH e SIDA em Portugal, lançado, em 2020, pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), referir que, em 97,3% dos casos ocorridos em 2019, em que a informação referente ao modo de transmissão não estava omissa, a transmissão tenha ocorrido por via sexual, com 57,8% a referirem contacto heterossexual, e 39,5% de homens que fazem sexo com outros homens. Ao contrário do que se apontou durante vários anos, esta epidemia não é exclusiva de um grupo de risco. Na verdade, ele não existe. Existem, sim, comportamentos de risco que podem tornar as pessoas mais suscetíveis de o contrair: como o consumo de droga injetável através da partilha de seringas ou as relações sexuais sem utilização do preservativo. Na verdade, o VIH pode afetar qualquer pessoa, de qualquer orientação sexual, estrato social ou mesmo de idade, que tenha estado em contacto com sangue, fluidos sexuais ou leite materno em casos de grávidas com infeção por VIH não controlada.

O podcast que tem mesmo de ouvir

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Em 2021, a Rádio Observador em parceria com a Gilead, lançaram o podcast “Pensa Positivo”. Em quatro episódios, falou-se sobre a evolução do Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) em Portugal, ao longo do tempo. Este ano, arrancamos com a segunda temporada deste podcast, para demonstrar aos ouvintes como é possível, hoje em dia, ter-se uma vida dita normal sendo portador do VIH. Para isso, vamos conversar com quatro convidados, todos eles seropositivos: Fernando Ferreira, Miguel Tavares, Eduardo Lemos e Paula Lopes.

Aponte na agenda: o primeiro episódio vai para o ar, dia 9 de novembro, na Rádio Observador.

Estigma e discriminação

Estigma é, ainda hoje, quatro décadas depois, uma palavra associada aos doentes com VIH. Um estigma que, muitas vezes, pode levar a que os próprios doentes, com medo de serem discriminados, procurem cuidados de saúde mais tarde — o que pode ter consequências graves no seu bem-estar.

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Número de casos de infeção por VIH em Portugal desde 1983 até 31 de dezembro de 2019.

Ora, sabendo-se, hoje, que o tratamento contra o VIH tem benefícios individuais, como uma melhoria na saúde e a diminuição da carga vírica, quanto mais cedo forem iniciados os tratamentos, melhor. Além disso, um doente em tratamento contribui para a contenção da transmissão do vírus. É o desconhecimento sobre este e outro tipo de informação relacionados com os avanços no tratamento do VIH que levam a que a sociedade ainda discrimine estes doentes. Mas também os possíveis doentes, com receio do estigma, tendem a “fechar os olhos”, o que lhes pode custar a vida. Neste sentido, podemos dizer que o estigma, e consequente discriminação dos doentes com VIH, deve-se, sobretudo, à falta de literacia em saúde, tanto por parte da população em geral, como por parte dos próprios doentes. E esta iliteracia, e por consequência o próprio estigma associado à infeção, acaba por mexer, muitas das vezes, com a saúde mental dos portadores de VIH.

VIH e SIDA: as diferenças

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Ainda existe uma certa confusão sobre o que é o VIH e o que é a SIDA. Na verdade, uma pessoa infetada com VIH pode não ter SIDA. Isto porque:

  • VIH: Trata-se do Vírus da Imunodeficiência Humana que, transmitido através do sangue, de fluidos sexuais ou leite materno, enfraquece o sistema imunitário da pessoa afetada, deixando-a sem defesas contra doenças. Ao penetrar nas células do sistema imunitário, o vírus multiplica-se e provoca-lhes a sua destruição. Existem dois tipos de VIH — VIH do tipo 1 (VIH-1) e VIH do tipo 2 (VIH-2). O VIH-1 é o mais comum no mundo, exceto em África, onde prevalece o VIH-2, endémico da região da África Ocidental. Os portadores de VIH são considerados seropositivos.
  • SIDA: A síndrome da imunodeficiência adquirida é, de uma forma simples, a fase mais avançada da infeção por VIH. Quando o vírus se instala, vai, progressivamente, enfraquecendo o sistema imunitário, o qual fica mais suscetível a contrair as chamadas infeções oportunistas. Isto é, infeções que não causariam doenças numa pessoa sem diminuição da imunidade.

O caminho trilhado em Portugal

Se em 1983 Portugal diagnosticou o primeiro caso de VIH, só 2 anos mais tarde, em 1985, é que foi criado o Grupo de Trabalho da SIDA e do Sistema de Notificação de Casos de Infeção por VIH/SIDA. Mas até o vírus constar da lista de doenças de declaração obrigatória, o caminho foi mais longo: apenas a 1 de fevereiro de 2005. E se em 1999 Portugal registava o maior valor anual de novos diagnósticos (3358), nos anos subsequentes passou a haver um decréscimo neste número, de acordo com o último relatório referente à infeção VIH e SIDA em Portugal.

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Número de notificações de novos casos de infeção por VIH recebidas no INSA, com diagnóstico ocorrido entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2019.

Chegados ao século XXI, a evolução do VIH tem vindo a ser positiva: não só houve uma diminuição de novos casos anuais, como aqueles que surgiram foram diagnosticados num estado mais precoce de doença. O atingimento por parte de Portugal das metas do Programa Conjunto da Organização das Nações Unidas para o VIH/SIDA (ONUSIDA) é ilustrativo desta progressão positiva. Vulgarmente chamadas de 90-90-90, estas metas tinham como objetivo para 2020 que 90% das pessoas infetadas estivessem diagnosticas, 90% dessas pessoas estivessem em tratamento, e 90% das pessoas em tratamento se encontrassem com carga viral suprimida (ou seja, o vírus não se transmitia). Portugal atingiu estas metas ainda em 2019. Alcançados os valores, a ONUSIDA pretendia que em 2030, as metas passassem a situar-se nos 95-95-95. Mas dado o objetivo ter sido alcançado antecipadamente, as metas dos três 95 foram antecipadas para 2025. O intuito é que em 2030 se possa deixar de considerar o VIH uma ameaça para a saúde pública mundial.

Mas apesar de Portugal estar num bom caminho, é importante recordar que em 2019, a incidência de VIH no país foi de 7.6 casos por 100.000 habitantes, contrastando com a média de incidência nos países da União Europeia (UE) de 4.9. Apenas sete países da UE tiveram uma maior incidência do que Portugal.

Viver com VIH

Se na década de 1980, um doente com VIH em Portugal tinha de tomar cerca de 20 comprimidos por dia (experienciando vários efeitos secundários), entre 1997 e 1998, com o surgimento da terapêutica antirretroviral, tudo muda: não só o número de comprimidos a tomar diminui, como a sua eficácia dá mais vida aos portadores de VIH. Volvidos 40 anos, a medicina evoluiu ainda mais, e, hoje, viver com este vírus, em Portugal, é muito diferente daquilo que já fora.

Apesar de ainda não haver cura para o VIH, hoje é seguro afirmar que o risco de transmissão de VIH de uma pessoa com carga vírica indetetável há pelo menos 6 meses é negligenciável. Mas para atingir este ponto, é necessário tomar a medicação regularmente, sem falhas. Atualmente, o tratamento para o VIH é feito através de um ou poucos comprimidos que combinam vários componentes, podendo o tratamento ser adaptado ao estilo de vida da pessoa que vive com VIH. Contudo, no momento da escolha da terapêutica, deverão ser tidos em conta diversos fatores, como por exemplo as comorbilidades, ou as interações com outros medicamentos.

Hoje, ser seropositivo não significa ter a vida a prazo. E na verdade, com a toma regular da medicação e controlo da infeção, é possível ter uma vida normal. Se é verdade que ainda existe um certo estigma e discriminação, também é verdade que o sistema legal português dá hoje mais proteção contra a discriminação no sistema escolar, de saúde ou profissional às pessoas que vivem com VIH.

Fernando Ferreira, Miguel Tavares, Eduardo Lemos e Paula Lopes são quatro portadores de VIH, e a prova de que com a ajuda da medicina, é possível viver-se uma vida normal e saudável. Conheça as suas histórias na segunda temporada do podcast “Pensa Positivo”, VIH – 4 Décadas, 4 Histórias, uma parceria da Rádio Observador com a Gilead e com o apoio da Associação Abraço.

Para saber mais sobre VIH consulte o website pensapositivo.pt.

FONTES:

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