Desde meados da década de 1980 que António Mega Ferreira (que morreu esta segunda-feira aos 73 anos) se destacou como poeta, escritor e ensaísta. Publicou mais de 40 obras, tendo experimentado a ficção, o ensaio, a poesia e a crónica. Reconhecido esteta e erudito, com claro gosto e interesse pela tradição clássica, o autor destacou-se pela capacidade de leitura e observação sobre os clássicos. Da literatura à história da arte, não faltam por isso obras na sua bibliografia que espelham essa aptidão.

Com Crónicas italianas, lançado em 2021 pela Sextante, venceu em setembro último o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga da Associação Portuguesa de Escritores. Já este ano publicou Roteiro Afectivo das Palavras Perdidas, pela Tinta-da-China. Recordamos algumas das obras mais recentes que o destacaram como escritor e pensador.

“Roteiro Afetivo das Palavras Perdidas”

Tinta-da-China, 2022

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Neste pequeno livro (publicado muito recentemente), que assume a forma de dicionário, Mega Ferreira reúne e reflete sobre um conjunto de palavras (e expressões) em desuso. Uma arqueologia da memória e por isso afetiva, em que resgata algumas experiências (verbais e vitais), contribuindo para a caracterização mental de uma geração lisboeta, a que nasceu em torno do ponto médio do século XX. Sem pretensões lexicográficas, trata-se de um exercício de introspeção e de memória que transporta o leitor para viagens, episódios de infância, livros, sortidos finos, grandes lanches na casa da tia Lídia e um certo Portugal (que já não existe?).

“Crónicas italianas”

Sextante, 2021

Neste livro, próprio de um viajante curioso e introspetivo, Mega Ferreira recupera uma velha tradição da narrativa literária, “a viagem a Itália”, que teve cultores desde a Idade Média e representava para os escritores uma viagem iniciática indispensável para o contacto com as artes clássicas e seu conhecimento. Seguindo as pisadas de Montaigne, Goethe e Stendhal, encerra com este “grand tour”, onde cruza experiência de viagem com literatura e arte, o tríptico que integra os seus anteriores títulos Roma – Exercícios de reconhecimento e Itália – Práticas de viagem. Sob a alçada de narrativas verdadeiras ou míticas, o autor propõe-se a observar por dentro a história das cidades, dos seus criadores e das grandes obras das artes plásticas, da arquitetura, da literatura e da música, que se fundam na cultura do país.

“Fazer Pela Vida – Um retrato de Fernando Pessoa o empreendedor”

Assírio & Alvim, 2005

Não sendo exatamente uma biografia – nem assumindo tal pretensão – através deste livro Mega Ferreira pretende iluminar alguns aspetos da vida prática de Fernando Pessoa, que, prisioneiro de uma grafomania ímpar na nossa história literária, deixou também testemunho escrito das muitas atividades com que tentou, com sucesso desigual, sobreviver. Uma obra onde se explora os 47 anos práticos da vida deste singular poeta português que foi, afinal de contas, um empreendedor e inventor, por vezes alucinante, que teve as suas iniciativas comerciais, empresariais e em nome individual, numa sobrevivência prática que o permitiu ser um dos nomes cimeiros do modernismo – vanguarda na qual teve também um importante papel de editor que aqui não fica esquecido.

“Mais Que Mil Imagens”

Sextante, 2019

Dos estímulos visuais para os impulsos literários. Não sendo este o “museu imaginário” de Mega Ferreira – onde se reuniria por certo a sua cultura visual preferida em diálogo com André Malraux – Mais Que Mil Imagens reúne sim, um conjunto de imagens que suscitaram, em diversos momentos, o desejo de escrever. Nesse espaço deambulatório, vamos de Caravaggio a Ingmar Bergman, de Edward Weston a Elvis Presley, de Picasso a Niemeyer, da pintura ao design, da arquitetura ao cinema, da fotografia à autorrepresentação. Num tom ensaístico, mas também profundamente pessoal, o livro abre com o esclarecimento da origem do aforismo “Uma imagem vale mais que mil palavras” e com o encantamento para quem o impacto das imagens foi tão forte que ainda hoje habitam em si e fazem parte do seu mundo que se dá a conhecer.

“A Expressão dos Afectos”

Assírio & Alvim, 2001

Em 2002, foi-lhe atribuído o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, pelos contos reunidos nesta obra. Cobrindo um leque temporal de dez anos, nem todas as ficções de A Expressão dos Afectos são contos, no sentido mais convencional do termo. Mas em todos existe a mesma utilização da escrita ficcional para interrogar o mistério dos afectos, das fantasias e das emoções. É precisamente sobre esta modulação que se arquitetam os textos aqui reunidos, num exercício borgeano, com referências que vão desde o cinema clássico norte-americano até ao Império Romano de Júlio César.

“Viagem Pela Literatura Europeia”

Arranha-céus, 2014

Ao longo de dez capítulos, António Mega Ferreira propõem uma viagem que começa a bordo do navio que leva Ulisses de regresso à sua Ítaca bem-amada. Num salto até ao Mediterrâneo e às portas de Lisboa, desdobram-se ensaios, cada um dedicado a uma obra maior da literatura europeia. Da Odisseia, atribuída tradicionalmente a Homero, ao Livro do Desassossego, atribuído por Fernando Pessoa ao seu semi-heterónimo Bernardo Soares, acompanha-se as aventuras prodigiosas do mais comovente dos heróis, D. Quixote, mas também das personagens criadas por Balzac, revela-se o sentido de humor de Thomas Mann na tragicomédia A Montanha Mágica, para se desaguar (finalmente) em Proust e na sua busca pelo tempo perdido. Trata-se de um roteiro de intelecto onde não se termina a viagem. Pelo contrário: é o ponto de partida para qualquer leitor que se queira aventurar na história da literatura clássica.

“Desamigados, ou como Cancelar Amizades sem Carregar no Botão”

Tinta-da-China, 2021

É a história de 11 amizades célebres que se transformaram em inimizades ferozes. Neste livro de título sugestivo e humorístico, Mega Ferreira debruça-se sobre o impacto das redes sociais e na forma como “desamigar” se tornou um verbo banal e um ato de estranha leveza e eficácia. Para isso, o autor regressa ao passado, para falar da rutura real de afetos – entre espectros, projeções, mágoas, egos, equívocos – através da história de amizades muito conhecidas no curso da história e que já sabemos que acabaram mal.

“Macedo — Uma biografia da infâmia”

Sextante, 2011

Fruto de uma dedicada investigação de mais de 20 anos, neste livro António Mega Ferreira dá a conhecer a vida de José Agostinho de Macedo (1761 — 1831), um padre, um poeta, um absolutista devoto capaz de intimidar qualquer pessoa. Turbulento e sem escrúpulos, destacou-se entre os mais célebres oradores do seu tempo e através dos seus sermões atacava os seus inimigos políticos, entre os quais se salientam Bocage e Almeida Garrett, e os iluministas Rousseau e Voltaire. Um homem que também representa uma época, – um período decisivo da história portuguesa, a da transição do ancien régime para o liberalismo, balançando entre os séculos XVIII e XIX –, que o autor não deixa por isso de visar e dar a conhecer.

“Papéis de Jornal Crónicas — 2003-2010”

Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011

Reconhecido pelo seu percurso como jornalista no passado, foi também como cronista que Mega Ferreira se fez notar como uma das vozes acutilantes da sua geração. Neste volume reúne-se uma seleção de crónicas publicadas regularmente em jornais ou produtos comunicacionais, onde se dá conta do olhar mais aguçado e pertinente deste autor português. É o retrato em movimento e transversal dos seus interesses, das suas opiniões, dos seus gostos, onde nada escapa, da cultura à política, passando pela arte e pelo entretenimento.

“Cartas de Casanova Lisboa 1757”

Sextante, 2017

Neste seu romance epistolar, António Mega Ferreira ficciona uma batida em retirada do poeta e aventureiro italiano Giacomo Casanova em busca de refúgio dos seus desmandos. O leitor encontrá-lo-á à sombra de uma cidade em ruínas: a Lisboa pós-terramoto, cheia de barracas onde os nobres e até a corte se haviam de refugiar. Pano de fudo para se contarem episódios picarescos, reencontros amorosos, entrevistas ilustres e não poucas oportunidades para exercitar a pena, a verborreia e outros apêndices deste escritor maldito. Tudo isso através de um conjunto de cartas efabuladas pelo autor português que nos trazem essa estadia de seis semanas, na qual Casanova faz os possíveis por entender os portugueses.