“Posso ser um novo Di Stéfano mas não posso ser um novo Pelé. Ele é o único que ultrapassa os limites da lógica”, admitiu Johan Cruyff, um dos maiores génios que o futebol algum dia conheceu. “Pelé é um dos poucos craques que contrariaram a minha tese. Em vez de 15 minutos de fama, vai ter 15 séculos”, destacou Andy Warhol, um dos maiores génios da pop art que o mundo algum dia conheceu. Qualquer que seja o prisma ou o setor, quando o nome do Rei sobe, os elogios nunca descem – apenas mudam de ângulo. Mas como o caminho de todos os ícones mundiais, houve pontos que determinaram tudo o que se seguiu até ao caminho da eternidade. No caso do antigo avançado, esses pontos não faltaram. Difícil mesmo é escolher. E aqui entram os seus loucos meses entre 1969 e 1970, onde Pelé foi protagonista de tudo um pouco.

Tudo começa com algo quase “anormal” para quem marcou tantos golos na carreira: apenas pela terceira vez ao longo de todo o trajeto que teve no futebol, Pelé foi guarda-redes num encontro particular entre Santos e Botafogo (entrou para o lugar de Jair Pessoa) depois de ter marcado o seu 999.º golo na carreira. O 1.000.º, claro está, era uma questão de tempo. Neste caso, de um mero jogo. E foi assim que, a 19 de novembro de 1969, uma grande penalidade cometida por Renê proporcionou outro momento de grandiosidade no percurso do número 10, que bateu Andrada, guardião do Vasco da Gama: mais um golo que os cariocas tentavam evitar a todo o custo para não entrarem na história pelas piores razões, partida interrompida com Pelé de bola debaixo do braço a fazer uma volta olímpica saudado por companheiros e adeptos adversários.

Antes, num outro continente e num outro contexto que ainda hoje não conhece provas concretas de que na verdade tenha acontecido, o brasileiro tinha feito história por motivos que levaram mesmo a uma música.

O meu Santos é sensacional
Só o Santos parou a guerra
Com Rei Pelé Bi Mundial [n.d.r. o tri seria uns meses depois], o maior time da Terra

É meu amor, primeiro amor, eterno amor, Santos
É meu amor, primeiro amor, eterno amor, Santos

“Um dos meus grandes orgulhos foi ter parado uma guerra na Nigéria, em 1969, numa das várias excursões que o Santos fez pelo mundo. Nós tínhamos um amistoso marcado na Cidade de Benin, que estava no meio de uma Guerra Civil. Só que o Santos era tão amado que as partes aceitaram um cessar-fogo no dia da partida. Ficou conhecido como o ‘Dia em que o Santos parou a guerra'”, escreveu Pelé em 2020 nas redes sociais. Que o conflito entre igbo e hausa, os dois grupos étnicos entre Nigéria e a região do Biafra  que se tentava tornar independente, existia, todos sabiam. Que aconteceu em fevereiro de 1969, também ninguém tem dúvidas. Que houve um cessar fogo apenas para que o conjunto de São Paulo jogasse, isso não há confirmação oficial – apenas que uma ponte foi libertada para que o autocarro da equipa passasse e que as garantias de segurança tinham sido asseguradas. Com ou sem acordo entre as duas partes, “durante 72 horas o futebol foi mais importante do que a guerra”, como escreveu a Time em 2005. Tudo graças a Pelé.

Em 1970, aquilo que o próprio prometera que nunca aconteceria, aconteceu. Com o Brasil numa ditadura militar que sempre procurou ter o número 10 por perto (com as críticas que isso valeu também ao jogador ao longo dos anos) e com João Saldanha com os dias contados como selecionador por todas as posições que tinha contra o regime, a aposta em Rivelino, Gerson e Tostão num particular frente à Bulgária foi a gota de água para a chegada de Zagallo, antigo companheiro de Pelé nas primeiras conquistas mundiais. Para o Velho Lobo, não houve dúvidas: os jogadores que escolhessem. O quarteto assumiu as posições em que iria jogar, Jaizinho juntou-se e a equipa com cinco 10 na frente foi também campeã mundial.

Antes, também o peso comercial de Pelé prevaleceu com a história rocambolesca entre duas das principais marcas de equipamentos desportivos detidas por irmãos de candeias às avessas. Adolf (Ad) Dassler, que foi o fundador da Adidas, e o irmão Rudolf Dassler, criador da Puma antes Ruda, tinham feito uma espécie de pacto de não agressão em torno do brasileiro apesar da má relação pessoal mas o encontro entre o número 10 e o jornalista Hans Henningsen, que ganhara a confiança de alguns jogadores, mudou esse acordo sem que a Puma inicialmente soubesse: 125.000 dólares e uma percentagem de vendas se mostrasse bem as suas botas novas. E foi assim que o antigo avançado retardou alguns segundos o arranque da partida com a Checoslováquia para que pudesse apertar os atacadores com as câmaras apontadas para si.

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