[ALERTA SPOILER: este artigo tem revelações sobre o episódio final da primeira temporada da série “The Last of Us”. Se não quer saber mais, não leia]  

“It’s ok baby girl, I got you.”

Estas oito palavras terminaram o oitavo episódio de “The Last Of Us”, o penúltimo, e arredondam a ideia do porquê da série da HBO ser diferente. De não ser simplesmente uma “série pós-apocalíptica”, de partir de um suposto apocalipse que não é mais uma variante da narrativa zombie e de isto não ser apenas a adaptação de um videojogo, ainda que se trate de um título muitíssimo popular. Assim sendo, e ao longo dos nove episódios que compõem a primeira temporada, o que é que “The Last Of Us” confirmou ser de facto: uma intensa história sobre relações humanas.

Há uma base sólida de fãs que já conhecia a história. Isso a HBO tinha no bolso e era garante de, pelo menos no início, assegurar boa audiência pela expectativa. Mas essa mesma audiência cresceu. O episódio de estreia teve 4.7 milhões de espectadores no primeiro dia (a segunda maior estreia da HBO na última década) e o oitavo, que termina com esta frase de Joel que recordamos no início deste artigo, 8.1 milhões. A série agarrou um público que foi percebendo porque é que ainda há lugar para o fim do mundo na televisão. Porque o fim do mundo proporciona histórias como as de Joel e Ellie. E de Tommy, Bill e Frank, Henry e Sam, Riley e, até certo ponto, David.

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As sólidas interpretações de Pedro Pascal (um case study de um ator com uma carreira muito despreocupada — aparentemente —, que na última década ganhou espaço e, neste momento, é um dos mais bem pagos da televisão) e de Bella Ramsey, como Joel e Ellie respetivamente, levaram o carácter das personagens do jogo para a televisão com solidez. Vale a pena falar então do “It’s ok baby girl, I got you” para explicar o final (isto, claro, vai ter spoilers) imprevisto (será que foi mesmo?) de “The Last Of Us”.

[o trailer do nono e último episódio da primeira temporada de “The Last of Us”:]

Um pouco de contexto. A série arranca com o dia em que os famigerados Cordyceps (uma evolução maligna e invasora derivada dos fungos) chegam à cidade de Joel, no Texas, em 2003. A filha, Sarah, morre nesse dia. Embora a ideia de filha perdida esteja presente na cabeça do espectador, ela é omitida a Ellie durante um longo período. O Joel que ela conhece em 2023 é diferente do de 2003. Mesmo assim, o espectador cai na inevitabilidade de ver ali uma relação protetora de um pai e uma filha, embora as feridas de Joel rejeitem com frequência essa ideia.

Por causa da rejeição, ao longo de alguns episódios assistimos à relação crescente entre dois seres humanos, duas pessoas que por uma casualidade (ou missão), ficaram juntas e têm de sobreviver. O humor de Ellie deixa de ser tão irónico e inconveniente para virar familiar; Joel vai deixando de ser uma pessoa-cimento com uma missão para aos poucos ceder aos factos: Ellie tem de aprender, tem de saber como se sobrevive.

Neste processo, muita coisa acontece. Há o episódio de Bill e Frank – o terceiro – que vai ser inevitavelmente um dos melhores episódios de televisão deste ano. Se há dúvidas das qualidades de “The Last Of Us”, elas afirmam-se ali: conexão humana. Conhecem Henry e Sam, dois irmãos que procuram uma saída de Kansas, tal como Joel e Ellie, e os quatro têm de deixar ceticismos e receios a um canto para conseguirem vencer. Há o reencontro de Joel com o seu irmão – Tommy —, a razão principal para Joel se fazer à estrada, para depois perceber que a vida dos outros pode mudar, apesar de o próprio não querer que a sua mude.

E há o flashback de Ellie no sétimo episódio, a necessária inclusão de “Left Behind” – uma famosa expansão do primeiro jogo “The Last Of Us” —, que, embora necessária para o desenvolvimento futuro da personagem, se sente como forçada no contexto. Parece que os argumentistas se sentiram forçados a seguir uma qualquer lógica: se o terceiro episódio sai da narrativa para contar a história de Bill e Frank, o terceiro a contar do fim faz o mesmo, obedecendo a uma fórmula, para deixar tudo em aberto para os dois episódios finais.

Não é coincidência que os últimos capítulos sejam realizados por Ali Abbasi, o iraniano que há umas semanas disse ao Observador, em entrevista, que tinha sido convidado para trabalhar no piloto e convidado para desenvolver todo o conceito. Craig Mazin e Neil Druckmann queriam alguém sem filtros para tomar conta da série que criaram, sem medo de mostrar violência e com especial dom para filmar a falta de humanidade (é assim nos seus filmes “Na Fronteira” e em “Holy Spider”).

O oitavo episódio, em especial, é caro. É aquele em que Ellie se transforma, em que por causa dos ferimentos de Joel, tem de encontrar meios de sobreviver sozinha enquanto o tenta manter vivo. É na tentativa de encontrar comida que se cruza com David e os seus seguidores, uma comunidade que vive ali perto e tem recorrido ao canibalismo para sobreviver. A dado momento, Ellie é capturada e David desenvolve as razões macabras porque se fixou em não matar a garota. Pela primeira vez desde que está com Joel, Ellie tem de se desenrascar sozinha e de sobreviver numa situação perigosa. A forma como ela mata David (muito violenta) lembra o modo como Joel mata um dos soldados nos primeiros episódios. Ao sair daquela casa em chamas é outra pessoa, transformada. Joel abraça-a e diz as oito palavras que começam este texto. “Baby girl”, o termo a que se referia a Sarah, a sua filha. A relação pai e filha até aí recusada, fica justificada.

O nono e último episódio da primeira temporada de “The Last Of Us” (disponível desde esta segunda-feira) concretiza o expectável. Antes de lá chegar, quase que volta ao início, ao mostrar o mundo sem nós, com a dupla a andar por uma cidade e a encontrar o que menos espera, animais selvagens à solta, a habitarem o espaço que antes era dos humanos. Esse mundo sem nós foi ficando esquecido a favor de trama, o lembrete final é um toque bem-vindo. Um pouco a dizer que, apesar do fungo ainda andar por aí, não há nada que impeça os humanos de recomeçarem e reconquistarem. Ou melhor, há: a ideia de pequeno poder, de autoritarismo, instala-se em todo o lado e percebe-se, aqui e ali, que ninguém está a fazer o seu melhor, estão apenas resignados à condição.

Menos Joel. E esse é o grande momento do final. Joel tinha uma missão, entregar Ellie a uma equipa médica para a examinarem e perceberem porque é que ela é imune ao vírus (a suposta causa, que abre o episódio, é um dos grandes momentos da série) e daí criarem uma vacina. O que nunca ocorreu a Joel até aí é que, para isso, Ellie tinha de morrer, porque os Cordyceps instalam-se no cérebro. Ao saber disso, deixa de ser um homem com uma missão. Aliás, mantém a missão: salvar Ellie.

Nos momentos finais, rápidos como um videojogo, filmados como um videojogo, Joel desafia as probabilidades – como num videojogo – para resgatar Ellie, para garantir que ela possa ter um futuro. Ou seja, quer dar a Ellie o que Ellie merece e que a filha não teve. Não é um momento de puro egoísmo, não é vontade de dar continuação à narrativa. É o confirmar da promessa de “The Last Of Us”: a humanidade perdeu, porquê continuar a lutar contra isso? Não são só os Cordyceps, eles foram a razão para se deixar de acreditar em viver. E só sobreviver. É triste, “The Last Of Us” nunca prometeu ser feliz. A primeira temporada termina com Joel a mentir. Mas é uma mentira de salvação.