Bastaria ouvirmos os quarenta primeiros segundos de “Barbarism Begins At Home” para que o mais leigo de entre nós ficasse absolutamente convencido do génio de Andy Rourke, o baixista dos Smiths que morreu na passada sexta-feira. Mas este texto não é sobre essa linha de baixo que dança num círculo infinito.
Quando morre um músico que admiramos desde miúdos (“admirar” é uma palavra demasiado fraca, cheia de uma neutralidade irritante, de uma contemplação morna que não capta a tempestade adolescente a que sempre voltamos quando ouvimos uma música que sabemos de cor e que nos enche de um entusiasmo juvenil), sentimos que qualquer coisa dentro de nós morreu também. Entramos num luto embaraçoso que as nossas ambições de seriedade nos impedem de extravasar com lágrimas ou pesares demasiado acentuados.
Veio-me isto à cabeça quando lia a última carta dos extraordinários Red Hand Files, que Nick Cave alimenta religiosamente há já uns anos. Um admirador dos Smiths (algo na carta me faz acreditar que se trata de um homem, mas talvez não seja, sei lá eu), que assina como A.S.Y., escreve uma carta a Cave onde tenta descrever a tristeza que sentiu ao saber da morte de Andy Rourke e o que daí transparece é uma tentativa atabalhoada de seriedade e contenção. A.S.Y. procura usar palavras frias e ponderadas para falar de uma dor que, percebemos desde a primeira linha, o entristece mais do que julga razoável e, no meio da tentativa de verbalização desse luto, não parece estar a pedir ajuda para lidar com a perda de Andy Rourke, mas antes a implorar a Nick Cave que não morra.
[“Barbarianism Begins at Home”:]
A primeira vez em que ouvi falar dos Smiths não foi através de um rasgo de melomania importada de revistas musicais estadunidenses ou britânicas, mas num desses momentos prosaicos que as coisas verdadeiramente importantes encontram para nos surpreenderem.
Tinha catorze anos e estava a tomar o pequeno-almoço na sala antes de ir para a escola. Como era meu hábito na altura, deitei-me no sofá e liguei a televisão no “Bom Dia Portugal”, da RTP, para ver e ouvir as capas dos jornais daquele dia. Acabada essa rubrica, o João Tomé de Carvalho anunciou que acabara de sair o novo álbum de um tal Morrissey, ex-vocalista dos Smiths. A imagem ficou parada na capa, onde um quarentão de poupa e fato empunhava uma metralhadora, enquanto lá atrás se ouviam os primeiros versos de “First of the Gang to Die”:
“You have never been in love
Until you’ve seen the stars
Reflect in the reservoirs
And you have never been in love
Until you’ve seen the dawn rise
Behind the Home for the Blind
We are the pretty petty thieves
And you’re standing on our streets”
A impressão que senti naquela manhã sonolenta foi tão forte que mal voltei a casa, pirateei tudo o que consegui encontrar daquele tipo peculiar. Nos meses que se seguiram, para desespero dos meus pais e irmã, acho que decorei a letra de todas as músicas dos Smiths.
Andy Rourke esteve lá quase desde o princípio. Não esteve nos primeiros ensaios, é certo, não testemunhou o milagre que foi, no sótão dos pais do Johnny Marr, em Manchester, dois miúdos, ligeiramente mais velhos do que eu naquela manhã de maio, começarem, sabem lá eles como, a tocar o “The Hand that Rocks the Cradle”, mas juntou-se aos Smiths ainda antes do primeiro concerto da banda.
[“The Hand that Rocks the Cradle”:]
Viveu de perto aqueles cinco anos míticos em que os Smiths existiram mesmo, fez parte de tudo aquilo e viu os Smiths (a banda que tantos de nós mais queríamos ter visto ao vivo, a banda a que tantos de nós sonhávamos pertencer e que procurávamos à nossa maneira imitar) acabarem, enquanto o adorável Morrissey se transformava na criatura bizarra que é hoje. Mais incrivelmente: quis sair da banda, o que talvez diga coisas sobre esses sítios que tomamos por paraísos.
Quando morre um músico que ouvimos desde miúdos, fecha-se atrás de nós a porta (entreaberta apenas nos momentos em que esse mesmo músico vinha a um qualquer festival português) da adolescência. E, por entre as frestas, a luz que daí vem traz-nos uma saudade insuportável, fazendo-nos por um momento esquecer que essas noites em que ouvíamos os Smiths fechados no quarto eram as noites em que os nossos amigos mais populares se divertiam numa festa qualquer sem nós, em que nos deitávamos na cama a lamentar a falta de reciprocidade do nosso amor com quem não tínhamos coragem para falar, as noites em que chorávamos a imaginar um futuro radiante bem longe de uma angústia que éramos incapazes de domar.
Quando morre um músico que amamos desde miúdos, ecoam na nossa cabeça aqueles versos que, por mais velhos que estejamos, não deixam, afinal, de resumir quem somos: “Sixteen, clumsy and shy/ That’s the story of my life”.