Preparem as tote bags, as camisas às flores, as meias brancas com uma raquete desenhada – e os impermeáveis: o Primavera Sound volta ao Porto e, com ele, uma dose saudável de música que por norma não passa nas rádios, embora nos últimos anos o festival se tenha desviado da sua matriz feita de música de guitarras e começado a albergar géneros outrora mal vistos pela crítica mas que têm tido uma ascensão fenomenal – o que explica a presença de Rosalía, na 5ªa feira, ela veio do flamenco, incorporou eletrónica e entretanto se tornou numa estrela global.

Por estes dias é possível que Rosalía seja mais conhecida que os blur, nome grande do cartaz, que encerram o dia 10 (sábado), ou que os New Order, que tocam antes dos blur, mas isto dependerá da demografia que se pretenda testar: a malta acima dos 40 será ainda fã dos New Order, os que estão entre os 40 e os 50 serão fãs dos blur e os abaixo dos 40 estarão lá para Rosalía.

Chega a uma altura em que vamos ao oftalmologista e conseguimos ler as letras grandes mas não as pequeninas; os três nomes acima mencionados estão todos em letra grande no cartaz do Primavera, toda a gente os conhece. Mas e toda aquela quantidade de letras pequeninas – que bandas são, valem a pena fazer kms a pé de um palco para o outro, ou mais vale ficar com o rabo sentado na relva a beber uma cerveja?

Para responder a essas e outras questões existenciais, aqui fica um mini-guia, dia a dia, do que ver no Primavera Sound do Porto.

Dia 7, 4ª feira

The Comet Is Coming

O rock faz-se com baixo, bateria e guitarras exceto se não for bem rock e a banda se chamar The Comet Is Coming, caso em que é feito de sintetizadores, bateria e saxofone – talvez o instrumento mais mal amado de toda a história da música pop. Nas mãos destes rapazes, contudo, isto é suficiente para cometer uma descarga elétrica ao nível da barragem do Alto Rabagão em dia de cheias: jazz, funk, eletrónica, música de dança e todo o tipo de avaria na matriz das combinações de géneros tornam os Comet Is Coming bem mais excitantes que a enésima banda de guitarras a reclamar da vida.

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Kendrick Lamar

Sempre que neste texto se falar de uma estrela vou ser breve, porque toda a gente sabe quem é / são. Por esta altura até a vossa avó sabe que Lamar é um dos músicos mais influentes da atualidade, até o vosso tio-avô ouviu o riff de piano de Swimming Pools (Drank) (de good kid, m.A.A.d city), a vossa prima mega-beta ouviu o super-êxito Bitch, Don’t Kill My Vibe antes das aulas de equitação e até a vossa sobrinha de 5 anos conhece o flow com que Lamar despacha as rimas agressivas de DNA. Não tem nada que saber: é ir e pronto.

8, 5ª feira

Fumo Ninja

Adoramos isto, não adoramos? Segredos bem guardados, que fazem grandes e estranhas canções pop das quais quase ninguém ouviu falar. Supostamente é Norberto Lobo quem está no baixo e aquela voz, que em Aku3 canta “Vem para a cama / tira o pija-ma”, por entre teclados lounge, é da magnífica Leonor Arnaut. Há um lado de música de elevador, algo de Roy Ayers, de Bulevar de Saint-Germain na música dos Fumo Ninja, um R&B para o século XXII. Mas acima de tudo há grandes canções dançáveis (o extraordinário refrão de Algas, por exemplo). Levem camisas às flores.

Alvvays

É muito possível que os Alvvays sejam hoje a melhor banda de guitarras indie ao cimo da Terra. Tiveram um primeiro êxito com Marry me, Archie e ao segundo disco, AntiSocialites (de 2017), ofereceram-nos muralhas de guitarra que escondiam melodias maravilhosas em fundo, como se os My Bloody Valentine alguma vez tivessem colocado a hipótese de serem pop. Em 2022, ultrapassados os problemas emocionais que marcavam AntiSocialites, deram ao mundo Blue Rev, uma forma de mostrarem todos os seus talentos: da homenagem a Tom Verlaine (chamada Tom Verlaine ) passando pelas guitarras à Birds e Smithes de Pressed, até à power-pop de Pharmacist, os Alvvays criaram algumas das maiores declarações de amor às guitarras. Para indies clássicos.

Jockstrap

Nem sempre os grandes festivais são os locais indicados para descobrir as novas correntes, o que está a acontecer AGORA e é realmente NOVO, antes de chegar ao grande público, mas os Jockstrap, autores do admirável I Love You Jennifer B são exatamente isso: o álbum, lançado no passado, é daquelas pérolas que existe num mundo só seu, que cria uma linguagem que mais ninguém fala. Neon, a faixa de abertura, começa como uma canção folk para guitarra acústica e voz feminina delicada, e 41 segundos depois deriva em pura eletrónica. A disfunção musical em que os Jockstrap rejubilam é capaz de confundir o melómano mais experimentado: há ferrinhos sintetizados, beats marados, assobios, ruído extremo, ambiente music, r’n’b trôpego e aquela voz tão filha de Bjork como de Françoise Hardy. Um pequeno monstrinho de laboratório em que a experimentação acaba por criar rebuçados pop.

Rosalía

Mesmo que não liguem nenhuma à mistura entre flamenco, eletrónica e reggateon que Rosalía pratica, experimentem beber meia dúzia de finos, relaxar o vosso lado leitor de Balzac e dar rédea livre à anca – há música para reclamar com o governo, para morrer de amor e há música que, enquanto reclama o lugar da feminilidade no pódio da pop, quer oferecer um show de ficar marcado na retina – e nas dores nas ancas.

9, 6ª feira

Pusha T

Não é só o monstro que precisa de amigos, os bons rappers também – ou, no caso de Pusha T, um irmão, No Malice, com quem formou os Clipse, e uma dupla de produtores , os Neptunes (sim, esses), que fizeram dos Clipse estrelas. (Os mais cépticos podem picar discos como Lord Willin’ (de 2002) ou Hell Hath No Fury (de 2006), para tirar dúvidas.) O seu talento não se ficou pelas aventuras familiares – a solo, temas como Numbers on the Boards (“I’ve been selling dreams for of a profit / Seen the kings cross they queens out / (…) through the mud I emerged clean out” ou King Push servem como montra para as proezas verbais e o talento lírico e narrativo do rapper .

Built To Spill

Nos anos 90 havia uma discussão constante entre os miúdos do indie-rock: gostas mais dos Pavement ou dos Sebadoh – e era suposto que escolhêssemos, como se não pudéssemos ser fãs de ambas. Mas os mais conhecedores de entre nós tinham a resposta perfeita na ponta da língua: Built To Spill. Liderados por Doug Martsch, que também surge nos Halo Benders (ao lado de Calvin Johnson, dos Beat Happening), os Built To Spill são como que os herdeiros dos Television: é como se as suas canções, em vez de terem uma guitarra rítmica a fazer dois ou três acordes, fossem constituídas por 2 ou 3 solos longos, em disputa entre si, o que torna cada canção imprevisível e um mistério quando irão explodir (mas vão explodir, sempre, e é sempre lindo). Carry the zero, a canção mais ouvida no Spotify, tem 30 milhões de escutas; Goin’ Against you mind, a 2ª mais ouvida (e abertura do extraordinário You In Reverse) tem apenas 10 milhões. Os anos passam e o reconhecimento não chega. Vão e gastem dinheiro em merchandising, que eles devem precisar.

Pet Shop Boys

Não inventaram a synth-pop mas levaram-na a um grau extremo de subtileza, fazendo hinos pop em que (discretamente) se falava de tudo, da SIDA ao amor, da condição gay ao salário mínimo. Trivia: são a banda preferida do realizador Pedro Costa. É ver, enquanto não metem os papéis para a reforma.

Darkside

Tendo em conta que o mais provável é estarem de férias, altura em que podemos encarar com alguma lassidão os nossos comportamentos, nada melhor que nos juntarmos ao Darkside – ou aos Darkside, duo propenso a misturar eletrónica atmosférica com instrumentos convencionais, que podem ir de guitarras a simples. Não esperem canções fáceis (Golden Arrow, a faixa de abertura de Psychic, o disco de estreia, alcançava épicos 11 minutos), nem dança sem freios (com exceções, como The Limit): nem toda a eletrónica aponta à anca, e a dos Darkside é para apreciar as sombras. Imagem fácil, eu sei, mas é tarde e ainda tenho louça para lavar e roupa para pôr a secar, além de mudar os lençóis da cama.

10, sábado

Unwound

Em dia de velhos, não podíamos esquecer os Unwond, nascidos nas cena pós-hardcore americana, quando ainda nem os Nirvana sonhavam fazer canções de jeito: juntaram-se em 1988 e mantém-se juntos até hoje, com alguns hiatos pelo meio – mas sempre com riffs pesados, muito feedback e uma garganta que deve precisar de doses elefantinas de rebuçados Doutor Bayard para não fenecer a meio das canções. A idade não os amansou, aprimorou-os, o que poderão comprovar quando ouvirem Demons Sing Love Songs, pedação imenso de canção (que já leva 22 anos de idade). Têm idade para serem vossos pais, mas é muito possível que sejam melhores que a vossa mãe.

New Order

Durante anos foi deles a música de abertura de Match of the Day, o Domingo Desportivo britânico. Nascidos das cinzas dos Joy Division, após a morte de Ian Curtis, mudaram de drogas, trocaram Manchester por Ibiza, as guitarras pela eletrónica e saíram das trevas; são uma das mais extraordinárias e inventivas bandas dos últimos 40 e tal anos, e sem eles nem havia Primavera Sound ou música indie. É possível que não estejam em grande forma, de qualquer modo é ir para agradecer o facto de terem existido.

Blur

Têm disco novo quase a sair, facto que interessa a exatamente 0 pessoas com mais de 45 anos. Ou não: por força do mega-êxito que são os Gorillaz, a outra banda de Damon Albarn, líder dos blur, estes acabaram por fazer o crossover para as gerações mais novas – o meu filho de 13 anos ouve-os exatamente por isso. Já não serão tão relevantes como na altura em que re-definiram a brittishness com Modern Life Is Rubbish ou reescreveram as regras do indie-rock em blur (sim, o disco tem o nome da banda) ou 13, mas gerem tão bem as suas ausências (e até mesmo a existência da banda), que cada aparição deles se torna fundamental, que mais não seja porque pode ser a última. E nesse dia teremos de ficar resigned to that (esta é só para conhecedores).