No início deste julgamento, Inês Sanches optou pelo silêncio e disse apenas que não queria prestar declarações. Mas esta quarta-feira, precisamente um mês depois da primeira sessão, e já com as mãos livres das algemas que lhe prendem as mãos sempre que entra na sala do Tribunal de Setúbal, a mãe de Jéssica começou a falar: “Disseram que matavam a minha família e matavam os outros filhos”. O coletivo de juízes quis perceber o que aconteceu nas semanas antes da morte de Jéssica, mas Inês Sanches não foi clara e obrigou o juiz Pedro Godinho a pedir para evitar “salpicos de verdade aqui e ali”. “Só quero perceber o que ia na sua cabeça”, foi repetindo. Mas o coletivo recebeu, sobretudo, contradições.

Habitualmente, estão também na sala, sentados ao lado de Inês Sanches, os outros quatro arguidos deste processo — três continuam detidos e o único arguido que não está acusado do crime de homicídio está em liberdade. Mas esta quarta-feira de manhã, a pedido da mãe de Jéssica, nenhum deles está presente. Já no período da tarde, os cinco arguidos entraram na sala, sentaram-se, Inês Sanches disse que não queria falar mais e só quando a advogada da mãe de Jéssica pediu a saída dos restantes arguidos é que Inês aceitou continuar a falar. “Vamos embora para ela dizer o que quer”, disse Esmeralda, enquanto saía da sala, já algemada.

Os cinco arguidos e os crimes

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  • Inês Sanches, mãe de Jéssica, está acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada.
  • Ana Pinto, mulher que terá feito os serviços de bruxaria, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Esmeralda, filha de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Justo Montes, companheiro de Ana Pinto, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.
  • Eduardo Montes, filho de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.

Para o Ministério Público, é claro que Jéssica foi dada como moeda de troca para o pagamento de uma dívida que Inês Sanches fez por serviços de bruxaria e que terá ainda sido utilizada como correio de droga e agredida várias vezes pelos restantes arguidos. Mas a mãe de Jéssica disse esta quarta-feira, entre lágrimas e soluços, que entregou a filha por causa de uma dívida do pai de Jéssica e seu antigo companheiro.

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– Quando é que foi a primeira vez que entregou a menina? 

– Não me lembro. 

– Há uma referência que usamos: foi antes ou depois da utilização generalizada das máscaras? 

– Foi depois. 

– Foi no mesmo ano do falecimento? 

– Foi.

– Quando entregou a primeira vez, deve ter feito a mala da menina. Tinha roupa de verão, de inverno? 

– De verão. 

– Mas quero me diga quanto tempo antes. Entregou porquê? 

– Ela estava sempre a ligar com ameaças para entregar a menina. Por causa da dívida da droga do pai.

– Que droga?

– Haxixe, branca e pedra. 

– O que é que a Ana Pinto, a Esmeralda e o Justo têm a ver com isto? 

– Eles é que ficavam com a menina. 

– Mas o pai comprava droga e pediam-lhe a menina? 

– Sim. 

– Então e o que é que a Jéssica tem a ver com isto? 

– Nada. 

– Mas sabe por que é que a entregou? 

– Por causa da dívida. 

– O que é que acontecia se a senhora não entregasse a Jéssica?

– Disseram que matavam a minha família e matavam os outros filhos. 

– A senhora passa pela GNR, passa pela Polícia Judiciária, a senhora vive numa sociedade, num Estado de direito, passa pela linha da frente desse Estado de direito, por duas neste caso, e decide entregar a sua filha ao invés de pedir ajuda. Porquê?

– Tive medo. Eu sei que não devia ter feito. 

– Temos de tentar perceber o seu processo de decisão. A senhora vai entregar uma menina de três anos a estranhos. Preciso de perceber como é que a senhora achava que eles iam concretizar essa matança da sua família. Como é que esse medo foi superior ao de entregar a sua filha às pessoas que ameaçavam matar a sua família.

Entre muitas perguntas do presidente do coletivo de juízes, as respostas da mãe de Jéssica foram sempre vagas e confusas, com Inês Sanches a confirmar parte daquilo que é descrito na acusação do Ministério Público sobre o dia em que foi buscar Jéssica a casa de Ana Pinto e de Justo Montes. “Eles ligaram para ir buscar a menina. Eu estranhei porque a dívida não estava paga”, começou por explicar, sem conseguir, no entanto, justificar a razão pela qual não fez nada quando viu as lesões que a filha tinha na cara.

À medida que as perguntas do juiz iam percorrendo os dias anteriores à morte de Jéssica, as dúvidas aumentavam. “Se há pouco não percebia, agora ainda percebo menos”, disse o juiz Pedro Godinho, depois de Inês Sanches admitir que, afinal, existia também uma suposta segunda dívida por serviços de bruxaria . “Era uma amarração para me juntar a mim e ao Paulo. Deram-me um saquinho para pôr debaixo da cama”, explicou a mãe da criança que morreu no ano passado.

Julgamento pela morte de Jéssica. Quando ligou para o INEM, mãe deu outra versão da história

Jéssica esteve três vezes em casa de Ana Pinto e de Justo Montes. Foi sempre levada pela mãe e, segundo Inês Sanches, a primeira vez que a criança foi dada como moeda de troca estava relacionada com a dívida de droga do pai e as restantes estavam relacionadas com a dívida de bruxaria de mãe. O coletivo tentou perceber o que levou esta mulher a recorrer a serviços de bruxaria, mesmo depois de uma alegada dívida por droga e de ter recebido ameaças. A resposta nunca foi conclusiva: “Não sei”.

Uma constante nesta sessão de julgamento foi a informação contraditória que Inês Sanches foi dando. Se de manhã adiantou que Jéssica tinha ido para casa de Justo Montes e de Ana Pinto por uma dívida de 100 euros, feita pelo pai, relacionada com droga e que já ia em 500 euros, durante a tarde disse que, afinal, esta dívida era de 250 euros.

As contradições entre a versão de Inês Sanches e a acusação do Ministério Público

Uma das questões que o tribunal quis perceber foi o que aconteceu no dia 19 de junho do ano passado, praticamente 24 horas antes da morte de Jéssica. Para o Ministério Público, Inês Sanches foi chamada a casa de Justo Montes e de Ana Pinto. “A arguida Ana Pinto contactou telefonicamente a arguida Inês Sanches, informando-a de que Jéssica Biscaia teria caído de uma cadeira e que tinha magoado o rosto, exigindo-lhe que levasse medicamentos”, lê-se na acusação. Já em casa, continua o MP, Inês Sanches “entrou e foi encaminhada pelo arguido Justo para o primeiro quarto onde se encontrava a arguida Ana Pinto com Jéssica Biscaia ao colo, completamente despida, apenas com a fralda colocada, prostrada, sem abrir os olhos, sem falar, com o corpo repleto de hematomas, queimadura na face (nariz e buço) e uma grande pelada na cabeça”.

Mas esta quarta-feira, a mãe de Jéssica contou uma versão diferente, afirmando que nunca entrou dentro da casa onde estava a filha e que apenas viu Jéssica ao colo de Ana Pinto, que estava no corredor da casa. E é nesta altura que Paulo Camoesas, advogado de Eduardo Montes, confronta Inês Sanches com as suas declarações, feitas a 15 de dezembro do ano passado à Polícia Judiciária e que indicavam que tinha entrado em casa da família onde estava a criança. “Então, mentiu? [em dezembro]”, perguntou o advogado. A resposta foi imediata: “Menti”.

Inspetora da PJ fala em “brutalidade e crueldade”

Já na presença de todos os arguidos na sala do tribunal, Catarina Maurício, inspetora da Polícia Judiciária de Setúbal, não teve dúvidas ao dizer que quando viu o corpo de Jéssica “era perfeitamente visível a brutalidade das agressões e a crueldade das agressões cometidas contra a Jéssica”. “Trabalho em homicídios há dez anos e nunca tive um caso assim”, acrescentou.

Jéssica “foi abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes”

Esta terça-feira, depois de ouvidas as últimas testemunhas chamadas pela acusação, foi a vez de ouvir as explicações de João Ferreira dos Santos, perito do Instituto de Medicina Legal, que fez a autópsia ao corpo da criança. Numa detalhada descrição foi possível perceber mais alguns detalhes, além daquilo que se tinha sido descrito na acusação pelo Ministério Público.

Julgamento pela morte de Jéssica. Criança “foi abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes e isso foi o que a matou”

“O que matou a Jéssica foi, sem margem para dúvidas, aquilo a que chamamos de síndrome do bebé abanado. Foi abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes. Isso foi o que matou a Jéssica. Alguém, de uma forma selvática, agarrou na criança, seja pela parte torácica, ou pelos membros, e a abanou com força. Dois a quatro abanões por segundo durante cinco segundos chega para que a criança tenha lesões gravíssimas”, explicou João Ferreira dos Santos.

À medida que iam mostrando as fotografias da autópsia, que mostravam as marcas da violência que Jéssica sofreu, o perito foi analisando cada parte do corpo da criança, sublinhando que “era difícil encontrar mais lesões traumáticas”. Foram encontradas marcas de unhas de adulto e lesões provocadas por puxões de orelhas — nestas lesões, os arguidos poderão ter utilizado uma tesoura e um alicate. E o perito confirmou ainda que Jéssica “não bateu com a cabeça só uma vez, bateu várias”. “Parece que andaram a jogar à bola com a criança. Atiraram-na, de certeza, contra a parede ou contra o chão”, acrescentou.

A dívida e as agressões que resultaram na morte de Jéssica

O Ministério Público acredita que o fim da vida de Jéssica começou quando, em maio do ano passado, a sua mãe decidiu recorrer a serviços de bruxaria para tentar salvar a sua relação com o namorado, que fala esta quinta-feira em tribunal. Estes serviços foram, aliás, pedidos a Ana Pinto, uma das arguidas e acusada dos crimes de homicídio qualificado, rapto, rapto agravado, ofensas à integridade física, tráfico de droga, violação e coação agravada. Por 100 euros, a mulher entregou “um saco com diversas folhas/ervas para colocar debaixo da cama”. Inês não pagou.

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Quando a dívida atingiu os 200 euros, a mulher que fez a tal bruxaria, em conjunto com os arguidos Esmeralda e Justo Montes, “engendraram um plano com vista a exigirem à arguida o pagamento, exigindo-lhe, então, a entrega da filha como garantia desse pagamento”. Jéssica terá passado a ser a moeda de troca pelas dívidas e terá estado em casa dos arguidos, pelo menos, três vezes.

Dois dos arguidos, “fazendo uso da sua força muscular, desferiram na cabeça e no corpo de Jéssica, com as mãos ou outras parte do corpo ou objetos, um número não concretamente apurado de palmadas, murros, bofetadas e pancadas, provocando-lhe um hematoma na hemiface esquerda, os lábios feridos, hematomas pelo corpo e dores”.