As pessoas que viveram a pandemia de Covid-19 sem nunca apresentarem sintomas podem ter no seu repertório genético uma variação que as torna mais capazes de se escapar ao vírus. Pelo menos é essa a suspeita da equipa coordenada por uma investigadora da Universidade da Califórnia, em São Francisco, de acordo com um artigo científico publicado esta quarta-feira na revista Nature.

Os estudos conduzidos durante a pandemia de Covid-19 mostraram que cerca de 20% das pessoas infetadas com o coronavírus SARS-CoV-2 nunca desenvolveram sintomas relacionados com a infeção. Perceber como é que as pessoas se livram do vírus sem adoecerem pode ajudar a melhorar as vacinas e criar novos tratamentos no futuro, defendem os investigadores.

A equipa de Jill A. Hollenbach, investigadora na Universidade da Califórnia, focou-se no sistema de antigénios leucocitários humano (HLA) com o qual trabalham há muito tempo. O HLA é parte fundamental da resposta imunitária uma vez que as proteínas deste sistema mostram às células imunitárias que moléculas estranhas devem atacar. No fundo, mostram os antigénios às células que defendem o nosso organismo, como os expositores de fruta à porta das frutarias mostram os produtos aos clientes.

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Este sistema é conhecido por ser muito polimórfico: uma alteração num dos genes que contém as instruções para o seu fabrico vão fazer com que o sistema produzido também seja um pouco diferente, o que provoca alterações na evolução das condições de saúde. Imagine que cada dono da frutaria muda o formato do expositor ou que coloca umas frutas mais acessíveis do que outras aos clientes.

Há variações do HLA “associados à rápida progressão e controlo da carga viral no vírus da imunodeficiência humana (HIV), hepatite B, hepatite C e outras doenças infeciosas”, assim como ao síndrome respiratório grave causado pelo SARS-CoV-1, refere o artigo científico. No caso, no entanto, uma das variações fará com que as células T do sistema imunitário tenham mais facilidade em reconhecer o coronavírus SARS-CoV-2, mesmo que nunca tenham tido contacto com ele.

Os investigadores pegaram numa base de dados com cerca de 30 mil dadores de medula óssea, para os quais a porção de HLA já tinha sido genotipada (ou seja, lida para identificar os seus genes) e convidou-os para, através de uma aplicação no smartphone, indicarem se tinham testado positivo para o vírus e se tinham tido sintomas.

Para o trabalho agora publicado, usaram os dados de 1.428 pessoas disseram ter testado positivo para o SARS-CoV-2 no primeiro ano da pandemia e antes de as vacinas estarem largamente disponíveis (entre fevereiro de 2020 e abril de 2021). Só foram consideradas as pessoas que se identificaram como sendo brancas (ou seja, de origem europeia), porque não havia indivíduos suficientes dos outros grupos étnicos para tirar conclusões.

Ao analisarem as pessoas com a variação do sistema HLA que lhes interessava (variante HLA-B*15:01), verificaram estava presente em 20% daqueles que permaneceram assintomáticos (num total de 136 pessoas) e apenas em 9% dos que tiveram sintomas. Se os indivíduos tivessem as duas cópias do gene para a variante HLA-B*15:01 a probabilidade de se manterem assintomáticos era oito vezes superior à dos indivíduos que tivessem quaisquer outras variações.

Da experiência, a equipa verificou também que existia uma reatividade cruzada: as células T de memória que nunca tinham estado em contacto com o SARS-CoV-2 conseguiam reagir ao vírus “como se o conhecessem” por já terem identificado e combatido, noutro momento, outros coronavírus que causam a constipação comum. Assim, esta variante do sistema HLA permitia que o sistema imunitário identificasse o SARS-CoV-2 por semelhança aos outros vírus da mesma família, mesmo sem ter tido contacto com ele.

Os resultados tinham sido publicados, em setembro de 2022, na medRxiv, uma plataforma de pré-publicação (sem ter sido revisto por cientistas independentes). Para a publicação na Nature, a investigação contou com a participação de uma equipa australiana, da Universidade La Trobe (Melbourne), que conduziu as experiências relacionadas com a reatividade cruzada.