A carreira musical de Sinéad O’Connor não começou nem acabou numa canção. A vida da artista irlandesa não se resumiu aos discos que gravou nem aos sucessos que colecionou. Mas se foi com “Nothing Compares 2 U” que alcançou visibilidade mainstream, foi também este o tema instintivamente transformado em banda sonora oficial da notícia (e das horas que se seguiram) da morte da cantora, aos 56 anos, esta quarta-feira, 26 de julho.

Foi o título que inevitavelmente se destacou no seu segundo álbum, I Do Not Want What I Haven’t Got. A Billboard distinguiu-o como o single número 1 do planeta no ano de 1990: a canção arrecadou prémios, fez de Sinéad O’Connor uma cantora conhecida no mundo inteiro e foi considerada como um dos melhores gravações de sempre por publicações de prestígio como a Rolling Stone, a Time, a Pitchfork ou o The Guardian — ou seja, uma avaliação unânime, que atravessou décadas e gerações.

“Nothing Compares 2 U” havia sido escrita e gravada seis anos antes, pelo norte-americano Prince. Também ele tinha tido uma infância marcada por episódios atribulados. Os seus pais divorciaram-se quando ele era apenas um miúdo. A mãe costumava ligar ao pai de Prince a horas tardias, implorando para que voltasse, acordando os filhos (Prince e a irmã Tyka), tirando-os da cama para que se juntassem num coro de lamentações e de pedidos desesperados de regresso.

As memórias de Prince ajudaram-no a transformar-se num excelente escritor de composições dolorosas sobre dilemas familiares. “Acho que é por isso que consigo escrever tão boas canções de separação”, escreveu no seu livro de memórias, The Beautiful Ones, publicado em 2019, três anos após a sua morte: “Tenho esse conhecimento”.

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[a primeira edição da canção, pelos Family, em 1985:]

Embora carregasse essa bagagem, Prince não pareceu totalmente convencido com “Nothing Compares 2 U” quando a compôs numa questão de horas, logo após ter assistido a um concerto dos The Jackson 5 em Dallas. A única outra pessoa presente no estúdio naquele momento, a sua engenheira de som Susan Rogers, especulou mais tarde, em declarações para o livro Prince & The Purple Rain Era Studio Sessions, que Prince tinha sido inspirado pela ausência da sua governanta Sandy Scipioni, que se tinha visto obrigada a deixar o emprego após a morte inesperada do pai, vítima de um ataque cardíaco.

“A Sandy era a pessoa que assegurava que ele tinha a sua bebida favorita, que garantia que a casa estava limpa, que havia flores frescas sobre o piano e que as suas meias e roupa interior estavam lavadas”, relatou Susan Rogers. “Ela estava fora e o estado de espírito de Prince estava cada vez mais obscuro. Ele só perguntava: quando é que a Sandy volta? Essa pode ter sido a inspiração para a canção.” Já um outro amigo de Prince, Jerome Benton, defendia que Prince tinha escrito a faixa a pensar nele, uma vez que se tinha separado naquele momento da sua noiva.

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Seja como for, competições à parte, Prince acreditava que o tema não correspondia à imagem pública que então procurava alimentar. Optou por canalizá-la para o projeto Family, um grupo de funk que mantinha com outros músicos (incluindo a sua namorada da altura, a cantora Susannah Melvoin), que lançou o seu único álbum, The Family, em 1985. O disco não teve grande sucesso, e “Nothing Compares 2 U”, em particular, não se destacou das demais canções. Não foi single, era apenas mais uma entre oito faixas.

[o vídeo de “Nothing Compares 2 U” por Sinéad O’Coonor, realizado por John Maybury:]

Parecia destinada a uma certa obscuridade, até que Fachtna O’Ceallaigh, o manager e namorado de Sinéad O’Connor, sugeriu à cantora que fizesse a sua própria versão daquele tema. O’Connor estava a preparar o seu segundo disco e identificou-se imediatamente com as palavras e a composição de Prince. A cantora e Fachtna O’Ceallaigh estavam a atravessar um momento difícil na relação, o que tornou a ligação ao tema ainda mais evidente (além de preencher toda aquela fase com alguma ironia melancólica).

“Eles estavam no processo de terminarem a relação quando gravámos a ‘Nothing Compares 2 U’”, recordou Chris Birkett, co-produtor e engenheiro de som da interpretação de Sinéad O’Connor, numa entrevista com a Sound On Sound. “É provável que tenha sido por isso que a tenha cantado tão bem. Ela veio ao estúdio, só gravou uma vez, e ficou perfeito porque ela estava completamente em sintonia com a canção. Espelhava a situação dela.”

Enquanto Prince tinha adornado o tema com elementos R&B, linhas de piano ou um solo de saxofone, Sinéad O’Connor optou pelo inverso. Despiu a canção até à sua versão mais crua, tornou-a mais sentimental e angustiante, abriu espaço para explorar a devastação e a dor — com a ajuda do produtor Nellee Hopper e do músico japonês Gota Yashiki (distinções criativas entre Prince e O’Connor que teriam mais tarde reflexo num estranho encontro em casa do americano, que envolveu lutas de almofadas, perseguições e outros comportamentos violentos).

[Prince ao vivo em 1999:]

Com uma interpretação tão honesta e sentida, vinda de um lugar tão doloroso e vulnerável, “Nothing Compares 2 U” parecia destinada a tornar-se um enorme sucesso. Para isso, foi igualmente essencial o videoclip dirigido pelo realizador John Maybury. Na rodagem, captaram diversas imagens de O’Connor, vestida de negro, a caminhar pelo Parc de Saint-Cloud, em Paris. Mas quando gravaram o plano da artista em estúdio, a cantar o tema enquanto esta fitava a câmara, sabiam que estava ali o elemento mágico do vídeo.

Tal como a canção, o teledisco era uma apresentação audiovisual crua e que procurava ser ilustração de dor e angústia. De cabelo rapado e gola alta preta, O’Connor cantava sob um fundo escuro. A sua cabeça parecia flutuar. Embora fosse o oposto dos videoclips que na altura brilhavam na MTV, revelou-se um autêntico caso de sucesso, conquistando três prémios nos MTV Video Music Awards: Vídeo do Ano, Melhor Vídeo Feminino e Melhor Vídeo Pós-Moderno. A canção chegou ao topo das tabelas de dezenas de países, além de ter sido aclamada pela crítica.

No final das imagens, um par de lágrimas escorre pelo rosto de Sinéad O’Connor. Não estava planeado, mais tarde haveria de ser público que a cantora estava, naquele momento, a recordar-se da mãe, que havia morrido num acidente de carro em 1985 e com quem nunca tivera uma relação harmoniosa. Tal como Prince, O’Connor atravessou o complicado divórcio dos pais quando era criança. Como contaria mais tarde, a mãe era abusiva, tanto física como mentalmente, para com os filhos.

[a gravação original da canção, por Prince, em 1984:]

“Eu não sabia que ia chorar quando cantei no vídeo porque não tinha chorado quando a gravei no estúdio”, recordou mais tarde. “Mas sempre que canto aquela canção lembro-me da minha mãe. Nunca paro de chorar pela minha mãe. Durante 13 anos, não consegui estar na Irlanda por causa disso.”

Estava na casa de banho quando alguém lhe contou que o single e o respetivo álbum tinham chegado ao número 1 na tabela de vendas dos Estados Unidos da América. “Quem me contou ficou zangado comigo porque eu não aceitei a notícia com alegria. Em vez disso, chorei como uma criança às portas do inferno”, lembrou no seu livro de memórias, Rememberings, publicado em 2021. Outras canções de I Do Not Want What I Haven’t Got refletiam sobre relações familiares, exploravam a dificuldade do perdão e lidavam com os seus traumas.

Três anos depois do sucesso alcançado por Sinéad O’Connor, Prince lançou a sua versão do tema, uma gravação ao vivo, com Rosie Gaines como voz convidada, que foi incluída em The Hits/The B Sides, uma coletânea de sucessos e raridades que na verdade só após a morte do músico conseguiu atingir a posição mais alta nas tabelas. Da mesma forma, só em 2018, dois anos após a overdose acidental de fármacos que o vitimou, é que foi oficialmente editada em single a gravação original de 1984 de Prince.