Morreu a cantora irlandesa Sinéad O’Connor. A notícia foi avançada esta quarta-feira pelo The Irish Times, sem citar qualquer fonte, e confirmada pelo The Guardian. Tinha 56 anos. Num comunicado citado pelo The Guardian, a família da artista anunciou “com grande tristeza” a morte da artista. “A sua família e amigos estão devastados e pedem privacidade neste momento difícil”, declararam, sem deixar mais detalhes.
A polícia britânica confirmou em comunicado que O’Connor foi encontrada sem vida na sua casa em Londres. A morte da cantora foi declarada no local, pelas 11h18 desta quarta-feira, e a família notificada. Morte não foi considerada suspeita.
A cantora deixa dez álbuns de estúdio. Num percurso que arranca com “The Lion and The Cobra”, em 1987, foi com “I Do Not Want What I Haven’t Got” (que lhe valeu este ano o prémio de “Álbum Clássico Irlandês” nos RTÉ Choice Music Awards), que o seu nome foi catapultado, com a venda de milhões de discos em todo o mundo. Afinal, entre as dez canções que compunham este trabalho encontrava-se “Nothing Compares 2U”: a canção, escrita por Prince, foi considerada o single do ano de 1990 pelos Billboard Music Awards. Ao longo da sua carreira, foi distinguida com um Grammy, um Brit e ainda três prémios da MTV. O álbum mais recente, de 2014, foi “I’m Not Bossy, I’m the Boss”.
Conhecida pelo cabelo rapado e discurso sem rodeios, a vida de Sinéad O’Connor, que em 2018 anunciou que se tinha convertido ao Islão e mudado de nome para Shuhada Davitt, foi marcada por vários momentos polémicos e tragédias.
Em 2021, a artista cancelou todos os concertos que tinha marcados após anunciar que ia participar num programa de um ano contra a adição e o trauma. Sinéad O’Connor tem historial de doenças psiquiátricas, tendo sido diagnosticada no passado com distúrbio de stress pós-traumático e distúrbio de personalidade borderline. Em 2022, a cantora foi novamente hospitalizada na sequência da morte do filho, Shane, de 17 anos.
“Não me arrependo de ter feito isso. Foi brilhante”. A canção do ano e a fotografia do Papa João Paulo II
Nasceu a 8 de dezembro de 1966, em Dublin. Era filha de John Oliver O’Connor, um engenheiro estrutural, e e de Johanna Marie O’Grady, mulher que ditou parte dos seus traumas. Foi casada quatro vezes e rapou o cabelo depois de um executivo a aconselhar, durante almoço, a meio das gravações de “The Lion and The Cobra”, a vestir-se de forma feminina e a deixar o cabelo crescer. Foi ao cabeleireiro e viu-se livre do que sobrava dele. Era uma cantora “punk de protesto que foi empurrada para os tops”, escreveu o The New York Times em 2021, a propósito do lançamento da de “Rememberings”. Na autobiografia, que veio a tornar-se num bestseller, O’Connor fez umas quantas duras revelações.
Uma das primeiras grandes polémicas que enfrentou nasceu no programa Saturday Night Live (SNL): Sinéad O’Connor rasgou num programa transmitido para milhões de pessoas a fotografia do Papa João Paulo II. Um gesto de protesto. Não há pistas de que tenham ficado remorsos em torno do acontecimento, bem pelo contrário: “Não me arrependo de ter feito isso. Foi brilhante”, disse ao jornal americano na mesma entrevista. “Mas foi muito traumatizante”, admitiu, descrevendo que, a partir daí, foi tratada como “uma cadela louca”.
O protesto gerou reações terríveis e a cantora foi criticada em praça pública várias vezes, até pelos pares. Foi vaiada por uma multidão, num concerto de homenagem a Bob Dylan, foi ameaçada pelo ator Joe Pesci num monólogo do SNL, foi gozada por Madonna. Era “uma miúda estúpida”, nas palavras de Frank Sinatra. A coisa escalou de tal forma que o grupo National Ethnic Coalition of Organizations — atual Ellis Island Honors Society — esmagou centenas de discos à porta da produtora de música responsável pelo trabalho. Foi, recorda o The New York Times, considerada “o rosto do ódio puro”.
“Os media estavam a fazer-me de louca porque eu não estava a comportar-me como uma estrela pop deveria comportar-se”, disse ao mesmo jornal. “Parece-me que ser uma estrela pop é quase como estar numa espécie de prisão. Tens que ser uma boa menina. E isso não é Sinéad O’Connor”, disse. “Sinto que ter um recorde número 1 descarrilou a minha carreira”, escreveu no livro. “E que rasgar a foto colocou-me de volta no caminho certo”.
A verdade é que o polémico motivo guardava motivos mais profundos. Numa entrevista concedida em 2017 ao Dr. Phil, a cantora irlandesa falou da infância traumática e revelou que foi abusada sexual e mentalmente pela mãe, Marie, que morreu em 1985 num acidente automóvel, quando Sinéad tinha 18 anos. “Ganhei o prémio no jardim de infância por conseguir enrolar-me na bola mais pequena mas a minha professora nunca soube por que motivo eu conseguia fazer aquilo tão bem”, lê-se na autobiografia. A fotografia do Papa rasgada em direto no SNL, escreveu no livro décadas depois, foi a única que retirou da parede do quarto da mãe na data do acidente. Aguardou pelo momento certo para destrui-la.
Prince tentou agredi-la e bateu em várias mulheres, revelou
Numa entrevista ao programa da estação televisiva britânica ITV, Good Morning Britain, Sinéad O’Connor avançou que o músico Prince, que morreu em 2016, agrediu “várias mulheres” ao longo da vida. Sinéad terá mesmo sido vítima de uma tentativa de agressão do cantor que escreveu o tema que lhe trouxe fama.
“Tentou bater-me. Foi uma experiência assustadora.” A tentativa de agressão terá acontecido numa noite após o autor de “Purple Rain” ter intimado a irlandesa a ir a sua casa, em Los Angeles. Sinéad, que hoje afirma ter sido “tola” por ir sozinha”, garante que Prince estava incomodado por esta não ser uma protegida sua, como o eram outros artistas emergentes para os quais o cantor e músico chegou a compor.
“Queria que fosse protegida dele e exigiu-me que não praguejasse nas minhas entrevistas. Disse-lhe onde podia ir [sorrisos] e ele atacou-me. Subiu as escadas e voltou com uma almofada. Havia algo [um objeto] duro na almofada. Saí a correr de casa dele e escondi-me atrás de uma árvore”, contou a irlandesa, em entrevista.
Alegadamente em fuga, Sinéad O’Connor garante ter encontrado Prince “na auto-estrada, às cinco da manhã” e recordou o que terá acontecido depois: “Estava eu a cuspir-lhe e ele a tentar dar-me socos. Tive de ir tocar à campainha de alguém, que foi o que o meu pai me disse sempre para fazer se estivesse numa situação como esta.”
Sinead O’Connor just revealed that Prince beat her up for refusing to become his protege and stop swearing. She went on to say that he also broke another woman’s ribs #gmb pic.twitter.com/tYuGuRIq7a
— Lauren Franklin (@Franklinsays) September 16, 2019
Nesta altura, justificou a cantora, Prince andaria “a tomar umas drogas bastante más”. A irlandesa garante que “não foi a única” que o norte-americano tentou atacar, acusando-o de ter “batido em várias mulheres” e afirmando que “uma das raparigas da sua banda esteve no hospital com costelas partidas naquele tempo”.
De Sinéad a Magda Davitt e de Madga a Shuhada. A conversão para o Islão
No relato da agressão de Prince, já a cantora irlandesa surgia nas entrevistas de hijab. Em 2018, converteu-se ao Islão, anunciando um novo nome: Sinéad O’Connor era Shuhada Daviit.
Numa mensagem publicada no Twitter, O’Connor anunciou ter “muito orgulho em ter-se tornado muçulmana” e que a sua conversão era “a conclusão natural de qualquer viagem teológica inteligente”. “Todas as escrituras levam ao Islão. O que torna todas as outras escrituras redundantes. Vou receber [outro] novo nome. Vai ser Shuhada’”, afirmou.
Sinead O’Connor converteu-se ao Islão e mudou nome para Shuhada’ Davitt
Antes de ser Shuhada, Sinéad foi Magda Davitt: no ano anterior, em 2017, a cantora anunciou que a mudança servia para fugir à “maldição familiar”, numa alusão aos abusos cometidos pela mãe.
Relativamente à religião, até ao escândalo sexual envolvendo padres católicos na Irlanda, O’Connor sempre se apresentou publicamente como católica, tendo chegado a ser ordenada como padre por uma seita, a Igreja Católica Ortodoxa e Apostólica Irlandesa, na década de 1990.
A morte do filho e a hospitalização
O’Connor foi hospitalizada em janeiro de 2022 e foi forçada a cancelar os concertos que tinha marcados. Em causa esteve a morte do filho Shane, de 17 anos. “Gostaríamos de anunciar respeitosamente que, devido ao processo de luto em andamento, Sinéad foi avisada de que seria mais saudável para tirar o resto deste ano e esperamos reagendar os concertos para 2023, quando ela estiver a sentir-se mais forte”, lia-se então no site oficial.
O adolescente tinha sido encontrado morto duas semanas antes, dois dias depois de ter dado entrada num hospital onde devia ter ficado sob vigilância por risco de suicídio. Pouco tempo depois, a cantora começou a partilhar mensagens perturbadoras nas redes sociais, que levaram ao seu internamento.
“Decidi seguir o meu filho. Viver sem ele não tem sentido. Tudo aquilo em que eu toco, estrago. Só fiquei por ele. E agora ele partiu. Destruí a minha família. Os meus filhos não querem conhecer-me. Sou uma pessoa de merda. E vocês todos só pensam que eu sou simpática porque consigo cantar. Não sou”, escreveu, no primeiro de uma série de tweets.
Após a morte de Shane, a cantora responsabilizou publicamente as autoridades irlandesas, escrevendo nas redes sociais que 26 horas após a morte do adolescente, que estava “ao cuidado do Estado irlandês” através da Tulsa, ainda não tinha recebido “qualquer contacto” da agência ou dos seus representantes.
“Nenhum contacto da Tusla é inaceitável.” Mais tarde acrescentaria ter identificado os restos mortais do filho. “Que Deus perdoe o Estado irlandês, porque eu nunca o perdoarei.” Avançou com um processo contra o hospital, mas acabou por desistir da batalha legal.
A cantora deixa três filhos: Jake Reynolds, de 34 anos, Roisin Waters, de 25, e Yeshua Bonadio, de apenas 15.
Artigo atualizado às 12h19 de 27/7 com as informações fornecidas pela polícia britânica