Em campo, Rafael Leão é um avançado veloz e possante, estrela do A.C. Milan e uma das maiores promessas do futebol português. No estúdio, assina como Way 45, o seu nome artístico enquanto rapper, agora com um primeiro álbum editado, My Life in Each Verse. Nascido em Almada em 1999 e criado no bairro da Jamaica, no concelho do Seixal, para Rafael Leão a maior paixão sempre foi o futebol. Embora tivesse uma ligação à música desde muito novo. Afinal, o seu pai, António Leão, era cantor de semba, música tradicional angolana. E o tio passava música como DJ.

“Não acho que isso me tenha influenciado a cantar, porque a minha cena sempre foi jogar futebol”, explica Rafael Leão ao Observador. “E também tinha outras paixões, mas a música só há um ano e meio ou dois é que começou a fazer mais parte de mim. De resto, não ligava assim tanto. Mas, sim, o meu pai era músico, o meu tio era DJ, tinha duas pessoas em minha casa que estavam por dentro.”

Quando era novo, ouvia “um pouco de tudo”, sobretudo aquilo que passava na MTV ou as recomendações de alguns amigos mais próximos, sempre “atentos às novidades”. “Sempre fui distraído, aluado. Não procurava muito. Hoje, sim, é que já ando mais atento aos álbuns que saem e presto atenção a artistas novos.” Só começou a fazer música recentemente, durante a pandemia da Covid-19, mas o interesse já lá estava — como forma de desabafar, escrevia versos de rap que nunca chegavam a ser gravados ou a encaixar num instrumental.

[o vídeo de “Papo de Ninja”:]

“Estava em Portugal, jogava no Sporting, e depois fui para Lille. Em Lisboa, morava com o meu pai, e quando fui para França, os meus pais iam lá de vez em quando mas não estavam sempre lá. Então a música passou a ser a minha companhia. Foi daí que comecei a escrever. Um ano depois, fui para Itália, houve a situação da quarentena e aí comecei a colocar os versos que fazia em instrumentais.”

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Nessa altura, autoproclamou-se Way 45. Foi um nome escolhido de forma espontânea, mas que carrega significado. Para si, era importante “representar” o código-postal 2845, do seu concelho do Seixal, e “Way” simbolizava caminho, rumo, direção. “Sempre me identifiquei com a mensagem do rap e era um dos géneros que ouvia com mais frequência”, diz, apontando como referências rappers norte-americanos como Roddy Rich, Lil Baby, Lil Durk ou Gunna, todos jovens estrelas do subgénero trap.

Ainda em 2020, formou com um grupo de amigos do bairro da Jamaica o coletivo artístico BGang, mas acabou por se lançar a solo, no início do ano seguinte, com o EP Beginning, além de singles como “Ballin’” (com Léo Stunna) ou “Big Bodies”. Foi um começo muito discreto: apesar de não ser segredo, quase ninguém associou Rafael Leão a este jovem rapper que acabava de se estrear. Alguns meses depois, a edição italiana da revista Rolling Stone — particularmente interessada tendo em conta o facto de Leão jogar pelo A.C. Milan — fez um artigo sobre a nova faceta do jogador, mas a generalidade dos adeptos de futebol não se apercebeu.

Foi no circuito social mais próximo de Rafael Leão que as músicas começaram por dar nas vistas, mas até a sua própria família ficou surpreendida. “A minha família não estava à espera, ficaram surpreendidos pela positiva, porque gostaram daquilo que eu estava a fazer. E os meus amigos já sabiam que o fazia, mas também ficaram surpreendidos com o feedback das pessoas, porque elas começaram a vibrar com as músicas.” Antes de se expor, consultou figuras reputadas do universo do hip hop e da música urbana em Portugal, mostrando os seus temas e procurando alguns conselhos. Foi o caso de T-Rex, Deejay Télio e Gson (dos Wet Bed Gang). Que dicas é que lhe deram? “Em termos de flow, segundas vozes e harmonias, cenas pequenas que fazem a diferença. Como as pessoas curtiram, pensei: vou avançar.”

Rafael Leão é um dos elementos chave da editora independente 608 Records, que trabalha com outros artistas, num espírito comunitário. Aliás, “elevar” o projeto é um dos principais objetivos do futebolista na música. “Quero meter estes artistas nos meus discos para todos subirmos juntos. É como se fossem família. Além do trabalho, são pessoas incríveis com quem tenho uma relação muito boa. Ajudamo-nos uns aos outros. Têm grande margem de progressão, são artistas com muito talento e mais importante é a relação que temos uns com os outros, porque assim torna-se muito mais fácil as coisas fluírem e chegarem ao nível a que eu penso que podemos chegar.”

Contudo, o seu foco está na carreira futebolística, tendo como maiores ambições a conquista da Bola de Ouro e da Liga dos Campeões. “Não penso em ser uma grande estrela no mundo da música, mas que as pessoas se identifiquem com aquilo que estou a fazer e com cada verso que escrevi. Claro que também gostava de ouvir um som meu a passar na rádio e coisas do género… Mas não tenho assim grandes ambições na música.” Embora admita ser possível dar concertos, mesmo com todos os constrangimentos associados à vida de um atleta de alta competição, refere que não é uma missão que tenha por enquanto. “Não é uma cena que me veja a fazer agora. O meu foco é o futebol. Se não fosse o futebol, se calhar o meu foco na música seria outro. Mas também já não é 100% um hobby, já virou trabalho, com as coisas que têm acontecido.”

[“My LifeIn Each Verse”, de Way 45, na íntegra no Spotify:]

My Life in Each Verse, o primeiro disco de longa duração, vem consolidar o seu trajeto artístico. Foi antecipado com singles como “Escolhas”, “Layah” (com Salah) ou “V.E.U.L.” (com Soarito). Com instrumentais compostos por nomes como YeezYuri, Beatoven ou Juzicy, Rafael Leão gravou temas no seu “mini estúdio” em Itália, mas também nas instalações da sua editora em Portugal. Ao todo, são 17 faixas, que oscilam entre diversas sonoridades dentro do universo do hip hop, evidenciando também a sua veia mais romântica. “A música é o meu coração, é onde posso exprimir aquilo que sou e vivo.”

Agora, além de escrever em português, também assina algumas canções em inglês. “Comecei a ficar mais à vontade”, explica. “Como falo inglês, às vezes certas palavras em determinadas músicas soam melhor.” E não o fez com a intenção de alcançar um público mais transversal, fora de Portugal. “Essencialmente, não foi para atrair outro público, não quero sair muito fora da minha cena.” Também chegou a produzir instrumentais, através do software Fruity Loops, mas nos últimos tempos deixou essa tarefa para outros colaboradores artísticos. Para este disco, trabalhou ainda com os Mobbers, SleepyThePrince ou KidRobin, entre outros artistas.

No futebol, assume que, no início, não o levaram muito a sério enquanto músico, mas que agora reconhecem o seu talento. “Às vezes alguns deles gozam”, conta, referindo-se aos colegas de equipa e da Seleção Nacional. “Mas têm gostado das últimas músicas que tenho lançado. Não apoiam diretamente, e dão assim algumas dicas para picar, mas no fundo dizem-me: ‘não, tu até tens jeito’.” Costuma ouvir sempre música antes dos jogos de futebol, até para se motivar, e por vezes ouve mesmo as suas próprias músicas. Vê o rap como algo a continuar presente na sua vida por bastantes anos, embora não faça planos a longo prazo. Além da música, Rafael Leão tem um interesse confesso pela área da moda, tendo criado a sua própria marca, a Son is Son, há já um par de anos. Entretanto será lançada a nova coleção com o seu cunho.

Quanto ao futebol, diz estar focado tanto no clube — renovou o contrato com o A.C. Milan até 2028 — como na Seleção Nacional, onde deseja ganhar espaço. “Tenho visto muitas pessoas a querer que eu jogue mais, sinto o apoio e isso é bom. Dá-me confiança para, quando puder entrar dentro de campo, dar o meu contributo para a Seleção.” E deixa elogios ao treinador, o espanhol Roberto Martínez, que treina a Seleção desde o início do ano. “Ele dá-me muita confiança, temos uma boa relação e acho que a forma como ele trabalha connosco, e comigo pessoalmente, pode ser uma mais-valia. O treinador é novo, tem o seu método, mas a vontade é só uma: defender a nossa Seleção e dar o máximo. Temos o objetivo de nos apurarmos para o Europeu e estamos focados naquilo que o mister tenta passar. Estamos num bom caminho.”