O que é uma izakaya?

Hipótese 1: Um conceito descoberto no estrangeiro, por um empreendedor português, sob o mote “Isto lá em Portugal é que era”.

Hipótese 2: Uma tasca japonesa onde se vai beber saké e comer okonomiyaki ao final do dia, mais confort food do que sushi, mais fritos que crus.

Pesquisando no Google descobrimos izakayas de Cascais a Massamá, do Porto a Vila Franca de Xira. A maioria não são izakayas, no sentido da resposta 2, mas sítios para comer o mesmo salmão esbardalhado em cones de alga nori, no sentido da resposta 1.

Ora, neste Izakaya, em Aveiro, encontrei um bom compromisso entre autenticidade e vida real. Não vi lá japoneses atrás do balcão com chapeuzinhos a fazer vénias a quem chega, nem a clientela era gente estafada de fato e gravata, desarrumados a beber depois do trabalho, como é costume nos buracos escuros de Kyoto. Mas estava lá muito do que faz uma tasca nipónica. E isso é bom.

Pode-se sempre questionar, ainda assim: porque raio alguém vai a Aveiro, terra de enguias e de bacalhau, e escolhe cozinha japonesa?

E decidindo-se por cozinha japonesa, porquê ir a uma pequena tasca forrada a madeira baça, quando há sítios com mais brilho na cidade, como o Subenshi, ou com mais história, como o Matsuri?

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Mandaram as circunstâncias, felizmente. Adoro enguias e bacalhau, mas tinha comido de véspera. De resto: brilho em dia de ressaca? Não, obrigado. Acresce: o Matsuri, histórico da cidade com mais de uma década, é dos mesmos donos deste Izakaya. Por fim: o restaurante abriu há meia dúzia de meses, era suposto estar cheio de vitalidade.

E estava. Entremos.

No Japão, algumas izakayas têm uma porta discreta com uma luz vermelha à entrada. Aqui, não havia luz vermelha mas havia uma porta discreta numa casinha azul de postal, que dava para uma sala ainda mais discreta.

Lá dentro, janelas luminosas com vista para uma praceta que parecia uma exposição de azulejos. Sentavam-se pouco mais de 20 pessoas e havia um balcão de onde se podia olhar a técnica do shamoji, nome dado à colher de madeira usada para arrefecer e arejar o arroz, fumegante à nossa frente, na cozinha aberta.

Fiquei impressionado e eufórico. O arrefecimento com shamoji, àquela hora, significava que teríamos um arroz perfeito de temperatura e textura daí a uns 15-30 minutos.

Olhando para o menu com mais calma, viam-se clássicos de sushi, entradas e pratinhos variados, tudo reconhecível de japoneses de largo espectro mas sem a catrefada de gunkans do costume.

Começou-se com os nigiri, as peças mais técnicas na arte do peixe cru, uma almofada de arroz por baixo, uma tira de peixe por cima, já pincelado de tempero. Tudo bem, o peixe sem cheirar a peixe, salmão gordo e lírio com alguma maturação, os bagos de arroz perfeitos, desenhados.

Desiludiu, todavia, faltar toro, a parte mais gorda da barriga de atum. O menu anunciava um toro “bluefin” da empresa espanhola Balfegó, instalada no sul de Espanha. O atum da Balfegó é pescado no mediterrâneo ocidental (ali a chegar a Vila Real de Santo António) e depois engordado em águas fechadas, com peixe azul.

Alguns restaurantes, inclusive de campeonato Michelin, preferem o atum da Balfegó ao selvagem. Talvez por isso estivesse esgotado. Pena.

Continuemos com o que havia. Na secção dos donburi (taças de arroz com cenas a acompanhar), foi-se pelo aji furai. “Aji” significa carapau, peixe que os japoneses tratam com respeito (ao contrário dos portugueses, que o põem só ligeiramente acima da cavala).

O prato de aji mais famoso é o aji tataki, o bicho braseado e picado, envolvido num molho ponzu ou com base de soja, gengibre e ceboleto. Já este furai é frito em polme de farinha e pão ralado, mas aqui sem panko, o farelo mais nobre e crocante. Estava ainda assim bem bom, os lombos do peixe altos, húmidos por dentro, a fritura seca, uma maravilha.

E eis que chega outro clássico guloso, a okonomiyaki. A okonomiyaki é como se fosse um condensado de umami em cima de uma panqueca. Olho para ela como uma sandes javarda a fingir que não é: maionese, bacon, lula, gamba e — obrigatório —, flocos de katsuobushi, finíssimas lâminas de atum seco que ficam a ondear no ar como folhas ao vento, como um corpo vivo, uma panqueca viva.

Quem quiser hidratos gordos sem disfarce, há também fatia de pão sobre fatia de pão: a katsusand de cachaço de porco com couve branca e molhanga não deixa ninguém sair com um ratito.

Talvez por haver herança da América Latina na cozinha, foi-me aconselhado um ceviche, peixes variados em mistura cítrica de sumo de laranja e limão, muito bem equilibrado com sésamo torrado.

Mais japónicas as espetadas yakitori, típicas de Izakaya e comida de rua, feitas de pedaços suculentos de frango, grelhados num molho especial, ligeiramente adocicado, ligeiramente salgado, conhecido como tare. Viva.

Quanto ao serviço, duas notas importantes neste país de ilusionistas e amadores. Respondeu com verdade a empregada, quando perguntada sobre a origem das guiozas. Que sim, eram de compra — coisa, aliás, comum em restaurantes da especialidade, incluindo esses sofisticados de Lisboa onde se pagam 70€ por cabeça.

Segunda nota. Serviço impecável no ritmo e na cadência, sem atropelos nem demoras, algo que só se consegue quando há gente boa e suficiente na cozinha e na sala.

Tudo dado e baralhado. O Izakaya de Aveiro é um idílio tranquilo mesmo no centro da cidade, onde pagamos um preço justo (25-30€ por cabeça, sem grandes vinhos e sakés) e podemos alhear-nos, por duas horas, dos moliceiros a motor e dos ovos moles já duros.

Será ainda mais Izakaya daqui a uns meses. Mas já é poiso obrigatório na cidade.

Ex-jogador de ténis, Tomás Cruges foi também inspetor para a área alimentar. Hoje em dia, dedica-se a um doutoramento sobre a influência gastronómica do Califado de Córdoba. Nos tempos livres, faz a revisão de livros de culinária para uma grande editora.