Os biólogos da Universidade dos Açores nem queriam acreditar quando, a 5 de janeiro de 2009, dois vigias os informaram sobre o possível avistamento de uma baleia-franca-do-atlântico-norte perto da ilha do Pico, nos Açores. A espécie não era vista nas águas do arquipélago há 60 anos. Embora as condições climatéricas estivessem muito longe do ideal, Mónica Silva, investigadora do Okeanos – Instituto de Investigação em Ciências do Mar da Universidade dos Açores, mobilizou a sua equipa e fizeram-se ao mar.

Os especialistas acabaram por confirmar a presença de uma fêmea adulta com cerca de nove anos, nadando em direção a oeste. “Não sabemos as razões que a levaram a passar por ali, uma vez que não há muitos registos históricos da ocorrência desta espécie nos Açores”, diz Rui Prieto, 53 anos, investigador auxiliar do Okeanus. “Mas sabemos que historicamente havia áreas de agregação da baleia franca na costa europeia e do norte de África, pelo que existe a possibilidade de as baleias ainda terem memória dessas regiões, fazendo talvez com que viajem na tentativa de encontrar outras fontes de alimentação e parceiros sexuais”.

Se as baleias-francas-do-atlântico-norte possuírem memória histórica, esta estará certamente carregada de traumas. Estes mamíferos gigantes – podem ultrapassar os 15 metros de comprimento e as 60 toneladas – carregaram ao longo de séculos a sina de reunirem as características perfeitas para a baleação (caça à baleia). “São dóceis, aproximam-se das embarcações e nadam muito lentamente. Como vivem em águas frias, têm uma espessa camada adiposa, muito desejada para a produção de óleo”, diz Prieto. “Além disso, o seu corpo flutua depois de morrer, ao contrário do de muitas outras espécies de baleias. Numa altura em que havia pouca tecnologia para puxar para bordo as baleias acabadas de matar, esta espécie tornou-se a predileta dos baleeiros. Daí ter sido apelidada de baleia franca, isto é, a baleia verdadeira ou “generosa” [para a caça]”.

A matança prevaleceu desde a Idade Média. As baleias francas que ocorriam desde a costa do norte de África até aos fiordes da Noruega praticamente desapareceram. À entrada do século XIX, a espécie já estava à beira da extinção, tanto que a sua comercialização deixou de ser viável. Hoje subsistem entre 300 a 400 indivíduos, especialmente na costa leste dos EUA e do Canadá. “No verão, estão na zona de fronteira entre os dois países, perto de Cape Cod na Nova Inglaterra, onde se alimentam de pequenos crustáceos, copépodes, camarões mínimos que engolem aos milhões”, diz o investigador. “No outono e no inverno, rumam a sul, fixando-se na zona da Florida. Essa é a zona de reprodução, onde são encontradas fêmeas com crias pequenas ou grupos de socialização, que resultam no acasalamento”.

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Graças ao fim da baleação e aos esforços de preservação da espécie encetados pelas autoridades americanas, esperava-se uma recuperação da população. Tal não se verificou. Pelo contrário, o declínio tem-se vindo a acentuar, muito por culpa da morte acidental em artes de pesca e do abalroamento por grandes navios. “Ficam emaranhadas nas redes ou presas aos cabos que ligam as artes às bóias, e muitas vezes carregam todo esse material atrás, o que lhes provoca feridas e as enfraquece, levando-as a uma morte lenta”, explica Rui Prieto.

A espécie tem uma morfologia bastante distintiva: uma cabeça enorme, a boca fortemente arqueada e placas de barbas muito compridas. Apresenta dois orifícios situados no topo da cabeça, através dos quais respira, produzindo uma nuvem de spray em forma de V quando vem à superfície. São negras, não possuem barbatana dorsal mas sim duas barbatanas peitorais grandes, tipo remo, usadas para guiar a sua navegação, e ainda uma cauda de grandes dimensões. Cada indivíduo é facilmente identificável através das calosidades que apresenta na zona da cabeça, formadas pela presença de grandes quantidades de ciamídeos, como as cracas, que nelas se alojam durante anos. “Foi possível identificar a baleia que passou nos Açores, batizada como ‘Pico’. Depois disso, já foi avistada diversas vezes noutros sítios, a última das quais em 2022. Foi vista na companhia de duas crias, em anos diferentes, sendo que uma desapareceu depois de poucos meses”, diz Prieto. “Tem-se verificado a perda precoce de várias crias, provavelmente porque as mães, enfraquecidas pelos acidentes com os artefactos de pesca, perdem a capacidade de as protegerem, transmitir energia e produzir o leite suficiente para a sua alimentação”.

Desconhece-se se a “Pico” ou outra baleia franca voltará a passar pelos Açores. “O avistamento aconteceu em janeiro, uma época em que, devido à agitação do mar, há menos vigias a escrutinar o oceano. Ou seja, se elas passarem aqui nesse período invernal, há fortes probabilidades de não serem detetadas”, diz Prieto.

O investigador está ainda mais preocupado com a resiliência da própria espécie que, diz, enfrenta um futuro preocupante. Habituadas a viver no frio, baleias-francas-do-atlântico-norte têm nas alterações climáticas outra ameaça à sua sobrevivência, visto que o aumento da temperatura da água pode causar alterações nas suas cadeias de alimentação. A esperança mantém-se, mas o perigo de extinção é cada vez mais real.

Nome comum: Baleia-franca-do-atlântico-norte
Nome científico: Eubalaena glacialis
Classe: Mamíferos
Estatuto de conservação: Criticamente ameaçado
Distribuição em Portugal:  Último avistamento em janeiro de 2009, a 3km da costa da ilha do Pico, no arquipélago dos Açores.
Principais ameaças: Abalroamento por grandes navios, morte acidental por emaranhamento em artes de pesca, alterações climáticas. População foi dizimada devido a séculos de caça à baleia.
Dimensões: Têm cerca entre 14 e 16 metros de comprimento e um peso médio de 63 toneladas.

Este é o último de dez artigos sobre espécies marinhas ameaçadas que ocorrem em Portugal. Na semana passada escrevemos sobre a águia pesqueira. E antes disso sobre a foca mais rara do mundo,  o vampiro dos mares que sobreviveu à extinção dos dinossauros, o habitante invulgar da Ria Formosa, a maldição da barbatana do tubarão-martelo liso, a joia do lusco-fusco submarino, o golfinho tímido que está a viver um drama, o intrigante réptil turista das águas portuguesas e a ave marinha mais ameaçada da Europa.