Pelo menos três entidades convidadas (uma editora e duas livrarias) recusaram-se a marcar presença na sessão de encerramento da Festa do Livro Independente da freguesia de Arroios, este domingo à tarde, por um dos oradores do evento ser o politólogo e historiador Jaime Nogueira Pinto.

Apesar do apelo ao boicote ao que essas entidades chamam de “expoente da extrema-direita”, a presidente da junta de freguesia de Arroios, Madalena Natividade, desvalorizou as críticas de “duas editoras em mais de 70”. Jaime Nogueira Pinto disse ao Observador que considera “ridículo” criticarem a sessão e que, “se há discurso de ódio, é deles“.

Ainda antes do evento, a autarca (independente, eleita nas listas do CDS) disse ao Observador que respeitava “todas as posições”, mas que não podia aceitar “qualquer tipo de política de cancelamento”. Madalena Natividade acrescentou: “Este é um espaço de inteira liberdade, aqui ninguém pode contar com autores proibidos ou censuráveis, há muitos anos que, felizmente, a censura acabou. Não aceitamos lápis azuis ou vermelhos, ou de qualquer outra cor política.” Jaime Nogueira Pinto também não recuou e garantiu: “Vou lá, com certeza”.

E foi mesmo. Eram 18h em ponto quando se iniciou “2023: Odisseia no Espaço”, a sessão de encerramento da segunda edição da Festa do Livro Independente da Freguesia de Arroios (a FLIFA’ 23), em que Jaime Nogueira Pinto e José Pacheco Pereira falaram sobre banda desenhada. Como Madalena Natividade já tinha previsto à partida, no palco improvisado no centro do mercado e perante uma plateia de várias dezenas de pessoas, teve lugar uma “conversa certamente estimulante com José Pacheco Pereira e Jaime Nogueira Pinto sobre banda desenhada, ficção científica e outros géneros tantas vezes considerados ‘menores’ mas que contribuem para a nossa formação enquanto leitores”.

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Ao contrário do que ao longo do dia se tinha feito prever, não apenas nas redes sociais das livrarias que apelaram ao boicote — um dos posts partilhado na conta da Livraria das Insurgentes avisava para potenciais “atos violentos (…) por parte de fascistas que se encontrem no local” —, mas também no próprio Mercado de Arroios, em conversas entre os livreiros presentes, o evento decorreu com total normalidade.

Antes da hora marcada, eram já vários os stands em arrumações, apesar de o encerramento da feira estar previsto apenas para as 19h, num assumido protesto silencioso contra a presença do politólogo Jaime Nogueira Pinto no local, explicaram vários editores, que não quiseram ser identificados, ao Observador.

Mas a pateada que estava prevista, contou um dos poucos editores que preferiu manter-se no local, fazendo questão de ressalvar que o fazia não por concordar com o posicionamento político de Jaime Nogueira Pinto, mas justamente por não lhe querer dar palco (“massagem de ego” foi a expressão utilizada), acabou por não acontecer.

Para além das palmas com que os dois debatentes foram brindados no início e no fim da sessão, o único sobressalto no mercado foi provocado por uma festa de aniversário, que ali ao lado juntava uma série de convivas, enquanto Jaime Nogueira Pinto e José Pacheco Pereira discorriam sobre as bandas desenhadas e os livros de ficção científica que os moldaram — com o segundo a admitir que, em determinado momento da vida, chegou a tentar aprender Klingon, a língua inventada para os alienígenas do universo Star Trek.

“Não me afetou nada. É um disparate”, disse Jaime Nogueira Pinto à Rádio Observador, já no final da sessão, que contou ainda com perguntas por parte do público presente.

Estas coisas acabam por ser contraproducentes para quem as faz, porque as pessoas estão fartas de cancelamentos, de proibir pessoas, de proibir palavras… É um disparate, seja à direita, à esquerda ou ao centro. É um sinónimo de estupidez, mais nada.”

Jaime Nogueira Pinto: “Já está tudo farto de políticas de cancelamento”

“Nunca me passou pela cabeça deixar de vir. Eu devo ser a única pessoa desta sala que teve livros e artigos censurados”, começou por dizer, por seu turno, José Pacheco Pereira, condenando todas as “tentativas absurdas de censura, à direita ou à esquerda”.

Conheço o Jaime Nogueira Pinto há muitos anos, sou amigo dele, e conheço bem as ideias dele — aliás, devo conhecê-las melhor do que a maioria das pessoas que fizeram este protesto —, mas sou completamente contra qualquer tentativa de censura. Quando se discute, discute-se com toda a gente, não tenho motivo nenhum para não participar neste debate.”

Questionado sobre a política de cancelamentos, cada vez mais frequente em Portugal, e sobre o ataque desta semana ao ministro do Ambiente e da Ação Climática, por ativistas climáticos, Pacheco Pereira apontou para aquela que considera uma cada vez maior “radicalização na vida política portuguesa, à direita e à esquerda”.

“Uma parte do processo dessa radicalização é criar uma espécie de guerra cultural. E nós sabemos, pela experiência dos Estados Unidos, que a guerra cultural resulta sempre numa guerra política mais dura.”

Pacheco Pereira: “Há um incremento de radicalização da vida política”

Livraria das Insurgentes, Urutrau e PIENA decidiram não estar “onde discursos que se querem de diversidade são ocupados por discursos de ódio”

A Livraria das Insurgentes é uma “livraria/biblioteca feminista” que tem por missão, segundo se lê nas redes sociais, divulgar “escritos por mulheres e oprimides pelo patriarcado“. Na sua página, este projeto diz que não estará “presente onde discursos que se querem de diversidade são ocupados por discursos de ódio”. A entidade diz que foi convidada para a FLIFA’ 23, mas que depois souberam que na programação estava presente “Jaime Nogueira Pinto, um nome conhecido em Portugal por ser atualmente um dos principais pensadores da Extrema Direita“.

A mesma entidade diz que é parte das “corpas normalmente postas à margem e violentadas por tais discursos: trans, não-binárias, femininas, migrantes, negras, ciganas…” Assim, perante a presença de Jaime Nogueira Pinto, a Livraria das Insugerentes diz que não estará presente com a sua “banca de livros” nem com a “apresentação das fanzines das MANAS”. O texto de protesto termina com um “não passarão”.

Também a Editora Urutrau (que edita obras em Galiza, Portugal e no Brasil) seguiu o mesmo caminho e anunciou que “diante da presença de um notório defensor da extrema direita na mesa de encerramento da FLIFA’23” decidiu ir a “público comunicar a sua desistência em participar desse evento.”

A livraria italiana PIENA também escreveu na sua página que “repudia qualquer discurso de ódio” e decidiu “manifestar o seu desacordo relativamente à inclusão de um expoente da extrema-direita portuguesa, Jaime Nogueira Pinto, no programa FLIFA”. A PIENA considerou “importante” estar presente na sexta-feira e no sábado no festival, mas decidiu não “participar [no domingo] no dia da feira em que esta personalidade estará presente”.

Jaime Nogueira Pinto: “Esses grupos de extrema-esquerda competem para ver quem é mais radical”

Não é a primeira vez que Jaime Nogueira Pinto — que é colunista do Observador e faz o programa “Conversas à Quinta” na Rádio Observador — é alvo de tentativas de boicote. Em 2017, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa cancelou a conferência-debate do movimento Nova Portugalidade que tinha como orador Jaime Nogueira Pinto.

FCSH cancela conferência de Jaime Nogueira Pinto

Sobre o boicote ao evento por parte de algumas editoras em Arroios, Jaime Nogueira Pinto diz que é “uma coisa disparatada”, já que fala “com toda a gente”. Lembra até que tem um programa na Antena 1 há vários anos com interlocutores de uma área ideológica diametralmente oposta à sua. “No programa Radicais Livres conversava com Rúben de Carvalho e agora com o Pedro Tadeu”, exemplifica.

O politólogo e historiador diz ainda que tem as suas “convicções” e que não vai deixar de as expressar e vê esta tentativa de o cancelarem como uma espécie de competição para “ver quem é mais ortodoxo”, pois “estes grupos extremistas gostam de competir para ver quem é mais radical”.

Sobre se houve resposta às editoras, a presidente da junta de freguesia de Arroios diz que esta foi dada “por antecipação ao ser convidada para a FLIFA’23 quem opera nesta área, obviamente sem qualquer tipo de preconceito da parte da junta.” Madalena Natividade acrescenta ainda que “a Festa foi criada como um espaço de liberdade, onde cada qual expõe o que bem entender” e que a junta de freguesia de Arroios “convidou editores e livreiros, independentemente do que editam ou das suas convicções políticas”.

Entre os convidados para a FLIFA’23 estiveram nomes como Ana Carolina Correia, Ana Coelho, Analita Santos, Andreia Bento, André Ruivo, André Santos, André Tavares, António Silveira Gomes, António Simão, Beatriz Duarte, Bernardo P. Carvalho, Bernardo Trindade, Carlos Vaz Marques, Carla Quevedo, Carolina Branquinho, Cláudia Castelo, David Roque, Derradé, Diego Inglez de Souza, Edite Guimarães, Elga Fontes, Filipa Barros, Gonçalo Viana, Hugo van der Ding, Jaime Nogueira Pinto, João Meireles, José Pacheco Pereira, Julia da Costa, Lithales Soares, Luiza Reis, Luís Barbosa Vicente, Márcio Matos, Mário Freitas, Nelson Nunes, Patrícia Moreira, Paula Cardoso, Pedro Carraca, Pedro Mexia, Rita Belchior, Rodrigo Manhita¸ Rute Teixeira, Rui Reininho e Vanessa Albino.