Foi como uma pedra que caiu e não tardou a agitar até as águas que pareciam mais calmas no universo azul e branco. As ideias soltas que André Villas-Boas tinha deixado no ar nas raras aparições públicas em que falava do FC Porto e da possibilidade de avançar com uma candidatura à presidência do clube serviram sobretudo para se perceber a reação mais ou menos nas entrelinhas que Pinto da Costa tinha nas declarações que fazia; agora, numa entrevista de fundo ao Expresso que teve publicada esta sexta-feira a segunda parte, não foi só em termos internos que se sentiu um burburinho adensado pela garantia deixada pelo jornal Record de que o antigo treinador dos dragões tem como irreversível a entrada na campanha para as eleições de 2024 com o tiro de saída agendado para o período após a revisão dos estatutos (e do mês do sufrágio, que pode passar de abril para junho). E foi aqui que se centrou o cerne de todas as críticas: a realidade financeira da SAD.

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“Há ponderadores positivos que estão relacionados com a parte desportiva e que acabam por premiar os administradores quando o clube se encontra em ruína absoluta. O que é que acontece no FC Porto e que acho que tem levado à saturação das pessoas: há uma grande disparidade entre o sucesso desportivo e o desequilíbrio financeiro e isso corresponde especificamente à gestão da organização. O FC Porto tem gastos absurdos não só na massa salarial, mas também nos serviços externos, nos comissionamentos, na administração. Há uma série de poupanças que são evidentes e fáceis de fazer, havendo desejo para que as mesmas aconteçam. Mas, digo-vos sinceramente, o que mais me choca é a forma leviana e de bom tom e de cavaqueira com que se apresentam contas de 50 milhões de euros de prejuízo. Isso é grave e acho que é isso que leva à saturação atual porque não pode ser tão fácil e tão gozão apresentar umas contas destas. E é isso que leva à revolta das pessoas e desejo sentido de mudança”, apontou Villas-Boas, de 46 anos, ao Expresso.

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“Havendo a continuação de uma gestão destas no futuro entraremos em ponto de não retorno porque os ativos do FC Porto estão hipotecados, o estádio está hipotecado. Portanto, o FC Porto neste momento não é dos seus sócios: é dos bancos, dos fornecedores, dos clientes. As receitas futuras estão cada vez mais antecipadas, o que por si só também é uma prevaricação com o futuro do FC Porto. Falemos do que é intocável: a obrigação de ser campeão. O FC Porto não pode construir um modelo só dependente das receitas da UEFA e televisivas. Tem de arranjar um crescimento de marca, maneiras de criar valor e de se organizar internamente para que, um dia, se algum descalabro aconteça, o FC Porto possa sobreviver sem essas receitas. Estar, durante os últimos 20 anos, somente sustentado nas receitas da UEFA e nas vendas de jogadores ditou esta perda constante de valor até ao ponto quase de não retorno”, acrescentou sobre o tema.

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Já no plano desportivo, André Villas-Boas, vencedor de todas as competições à exceção da Taça da Liga em 2010/11 incluindo Liga Europa, abordou também a presente situação de Sérgio Conceição, técnico que está na sétima época no FC Porto com recorde de jogos, de vitórias e de títulos. “É muito estranho, numa relação tão amorosa como a que o Sérgio tem com o FC Porto e que o seu presidente tem com o seu treinador, que ainda não tenha havido espaço para uma renovação. Teria sido de grande sentido de oportunidade fazer a renovação após o jogo com o Inter, não só pelo que ele representa para nós mas pelo sentido de oportunidade, já que é quando estamos mais isolados e tristes que pode surgir um abraço amigo e uma confiança no trabalho. Surpreende-me que não tenha acontecido, desconheço as intenções do presidente e do treinador, porque eles não falam do assunto e é tabu há bastante tempo. Tenho pena que assim seja porque o Sérgio, além de tecnicamente muito competente, projeta os valores do FC Porto de uma forma única”, disse.

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Aproveitando a centralização dos direitos televisivos, o ex-treinador que teve como último trabalho no banco o Marselha, em 2021, aproveitou para deixar uma “farpa” ao Benfica. “Tem tendência para estar acima da lei ou de prevaricar com a lei em várias situações, o que não pode acontecer. Há aqui um bem comum, em que as rivalidades têm de entender qual o bem comum de todos, da nossa Liga. Se formos incapazes de fazer isso estamos no caminho errado, portanto essa mensagem não é correta. Acho bem mais digna a atitude do Sp. Braga, apresentando alternativas a quadros competitivos, mesmo que não sejam aceites, mas lançando-as para discussão, do que essas tomadas de posição”, atirou sobre a ideia deixada por Rui Costa de que os encarnados “não querem nem vão sair prejudicados no processo”: “Temos de perceber como é que criamos valores da nossa Liga, que tem sido marcada por problemas operacionais, logísticos, de arbitragem e escândalos sem fim. Isso ficou evidente no intervalo que o presidente da Liga atribuiu para a venda dos direitos televisivos, entre €250 milhões a €500 milhões, isto é, uma coisa ou metade dessa coisa”.

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Por fim, e falando também da passagem pela China ou por Marselha, André Villas-Boas recordou o desafio cumprido que tinha de criança em participar no Rali Dakar e explicou como isso acabou por salvar-lhe a vida. “O Dakar ia-me tirando a vida, mas salvou-me a vida ao mesmo tempo. Tenho um acidente à quarta etapa e sou retirado de helicóptero. Nas radiografias que fizemos, não se detetou a fratura que sofri na coluna. Voltei para Portugal pensando que não tinha fraturado a coluna. Passando umas semanas da recuperação do espasmo muscular que sofri, liguei aos meus amigos e fui andar de mota. Mal arranquei, o assento da mota bateu-me no rabo e senti o impacto todo nas costas. Tinha a L1 fraturada. Tombei de dores, fiz exames e nesses exames, felizmente, a ressonância magnética detetou um tumor na tiroide, que tive de retirar imediatamente e que não teria sido detetado caso não tivesse havido o acidente”, contou.

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