Siya Kolisi, África do Sul e râguebi na mesma frase tornaram-se um caminho inevitável para ir escrevendo várias páginas no livro da história do Campeonato do Mundo. Primeiro, pelo que jogava. Depois, por ser o primeiro capitão negro dos Springboks. Por fim, pelo dom da palavra. Há muito que o número 6 se tornou o maior símbolo da visão que Nelson Mandela teve em 1995, quando entre resistências e ceticismo fez da organização de um Mundial no país a possibilidade de juntar uma sociedade dividida em termos raciais ao longo de décadas no período do apartheid. Agora, ao levantar pela segunda vez consecutiva o troféu Webb Ellis após a vitória frente à Nova Zelândia, o líder sul-africano, considerado uma das 100 pessoas com mais influência no continente pelo que faz dentro e fora dos campos, voltou a ser o grande protagonista.

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“Sinto-me grato por tudo aquilo que a equipa teve de passar, muitos desafios. Mas as pessoas da África do Sul estiveram sempre connosco e estamos tão agradecidos. Temos tantos problemas no nosso país mas conseguimos uma equipa destas. Viemos de diferentes backgrounds, temos diferentes raças mas juntámo-nos com um único objetivo: alcançar a vitória e mostrar à África do Sul que quando estamos juntos, conseguimos tudo. Desde que nasci, nunca vi a África do Sul assim. Sei aquilo que o Mundial de 1995 fez por nós mas agora, com todos os desafios que tivemos pela frente, o treinador disse-nos: ‘Já não estamos a jogar só por nós, estamos a jogar por um país’. Era isso que queríamos fazer. Por isso, agradecemos a todos aqueles que estiveram connosco. Nós amamos a África do Sul e podemos fazer o que quisermos se estivermos juntos como um só”, tinha referido após a final de 2019, que terminou com a vitória frente a Inglaterra.

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“Diferentes contextos, diferentes raças, um único objetivo”: o inspirador discurso do primeiro capitão negro da África do Sul

“Primeiro, quero dar crédito aos All Blacks [Nova Zelândia]. Eles levaram-nos até ao limite, levaram-nos até à zona negra que os jogos têm. Isso mostrou o tipo de equipas que eles são, sempre a lutar mesmo com um jogador a menos desde cedo. Colocaram-nos debaixo de imensa pressão. Depois, quero dar crédito aos meus rapazes também pela luta. Estou grato por termos conseguido chegar à vitória. Perdemos o nosso hooker no início do jogo [Bongi Mbonambi, substituído por lesão] e tivemos de adaptar-nos. Eles colocaram sempre uma pressão grande nas nossas linhas mas de alguma forma encontrámos sempre um caminho”, começou por referir o capitão sul-africano, que no final cumprimentou um por um todos os adversários.

“As pessoas que não são da África do Sul não percebem o que isto representa para o nosso país. Isto não é apenas um jogo, o nosso país já passou por tanto… Estamos apenas agradecidos por podermos estar aqui. Quero só dizer a todas as pessoas da África do Sul ‘Muito obrigado’. Esta equipa mostra aquilo que nós conseguimos fazer. Desde que trabalhemos em conjunto, tudo é possível, em qualquer contexto ou esfera. Nos campos, nos escritórios, juntos conseguimos tudo. Estou agradecido e muito orgulhoso desta equipa”, acrescentou ainda Kolisi no discurso que passou em todo o Stade de France após a vitória por 12-11.

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Mas esse não foi o único momento em que as palavras do capitão dos Springboks ganharam destaque um pouco por toda a imprensa internacional. Aliás, logo na conferência de imprensa após o encontro, a forma como deixou uma mensagem ao técnico Jacques Nienaber, que vai deixar a seleção, e agradeceu a todos os presentes a atenção que dão à equipa da África do Sul “para elogiar ou criticar”. “Jacques, honestamente, foi uma enorme honra e privilégio trabalhar contigo e conhecer a tua mulher e os teus filhos. Nós amamos-te não só como treinador mas como pessoa. Levaste-nos a outro nível. A forma como sempre falaste connosco… Nunca foi ‘Faz um grande ensaio, faz um tackle‘ mas sim como uma pessoa, pai, marido e filho ao longo de todo este caminho. Honrámos-te como equipa. Para onde quer que vás, vão ter sorte”, destacou.

A irreverência de Faf de Klerk, que nem mesmo com Roger Federer no balneário deixou de estar de cuecas com a bandeira da África do Sul, ou a eficácia de Handre Pollard, que desde a fase de grupos marcou todas as 13 penalidades que bateu (e que valeram vitórias por um nos quartos com França, nas meias com Inglaterra e na final com a Nova Zelândia), não passaram ao lado mas todos os compromissos dos Springboks depois da conquista do título ficaram marcados pelos discursos de Siya Kolisi, como se viu também no encontro que a equipa teve antes com o presidente  Cyril Ramaphosa. “Queremos agradecer ter vindo até aqui, apesar da sua agenda preenchida, e queremos também agradecer através de si a todos os 62 milhões de sul-africanos porque fomos guiados até aqui por eles. Não tínhamos conseguido conquistar isto sem o apoio e o espírito dessas pessoas. Com tudo o que o nosso país está a viver, só tentámos fazer o melhor pela África do Sul com o que gostamos mais, jogar râguebi. Sabemos o que o desporto já fez por nós”, salientou o capitão.

Mais tarde, na gala dos campeões onde toda a comitiva se apresentou com um fato especial para a ocasião, Kolisi voltou a subir ao palco para ser o representante de uma equipa a jogar por muito mais do que só um troféu. “Provavelmente só sentiremos o impacto do que fizemos quando chegarmos a casa. No Mundial de 2019, as pessoas tinham esperança que ganhássemos; agora, estavam à espera que ganhássemos. Sentimos esse peso de termos uma nação connosco, de uma forma positiva. Os vídeos que nos iam chegando da África do Sul mostravam que já não era sobre nós, porque nós como equipa já tínhamos ganho, mas sim pelo país. Sabemos que nem tudo vai mudar, sabemos que continuaremos a ter problemas mas sabemos que isto pode dar um pouco mais de esperança às pessoas e a jovens que pensem ‘Sei de onde venho, sei o que sou mas não vou deixar que isso defina o que quero ser'”, referiu o jogador dos franceses do Racing 92 numa gala antes do regresso ao hotel para fazer as malas e voltar à África do Sul… a cantar pelo aeroporto.

Também entre companheiros e compatriotas o impacto de Siya Kolisi não deixa ninguém indiferente. “Todo o seu caminho é o melhor resumo do sonho sul-africano, a lutar pelas coisas mais difíceis que qualquer outra pessoas descreveria como impossível”, destacou o companheiro de equipa Jean Kleyn. “Para uma pessoas como o Siya, chegar onde ele chegou partindo de Zwide… Não tenham dúvidas, aqui a 20 anos vão existir muitos Siyas Kolisis”, frisou Mzwandile Stick, adjunto dos Springboks. “É como falar de uma história encantada quando se olha para o Siya mas capaz de mudar a vida das pessoas. Ele mostrou a milhares de jovens que não interessa de onde vêm, tudo é possível. Com a cabeça no sítio certo, com um objetivo, só não se pode desistir. Temos muito orgulho naquilo que o Siya alcançou”, acrescentou.

Como tínhamos contado em 2019, por altura da final do Campeonato do Mundo organizado pelo Japão, Siya Kolisi nasceu e foi criado num complicado bairro de Port Elizabeth. Filho de um casal que estava ainda a terminar o ensino secundário na altura apesar de ter sido criado pela avó a partir dos 15 anos após a morte precoce da mãe, começou a jogar cedo râguebi, tendo sido detetado num torneio em Mossel Bay que lhe valeu uma bolsa de estudo no Grey Junior e, ato contínuo, na prestigiada Grey High School. Em 2013, o jogador (e também capitão) dos Stormers estreou-se pelos Springboks, chegando à liderança da equipa em maio de 2018 depois de já ter estado no Mundial de 2015. Antes, em 2007, tinha guardado na memória o dia em que foi a um café ver o encontro decisivo dos Sprinboks com a Inglaterra por não ter televisão em casa.

Exemplo na escola, exemplo em campo, exemplo no balneário e exemplo na sociedade, nem tudo foram facilidades para Siya Kolisi. Longe disso. Na infância, pelas dificuldades que a família atravessava enquanto ia fintando todas as más tentações de um bairro considerado perigoso. Mais tarde, pelo casamento com Rachel Smith, a namorada de sempre com quem tem dois filhos e que sofreu ameaças e pressões por ser branca e estar com um negro – o que afetou e muito o jogador. Siya Kolisi nunca cedeu e foi fazendo o bem: ser uma referência dentro de campo, ser um modelo fora dele e ajudar as pessoas mais próximas como as duas meias irmãs que, após terem estado cinco anos em orfanatos e famílias de acolhimento, passaram a viver consigo. Em 2020, depois da conquista do primeiro Mundial e na sequência da pandemia da Covid-19, o jogador de 32 anos criou também uma Fundação com o seu nome para ajudar os mais desfavorecidos.