Os vídeos começaram a aparecer nos telemóveis de muitos brasileiros. Um miúdo de 10 anos, ainda franzino e claramente baixo para a idade, fintava vários adversários e marcava golo atrás de golo em campeonatos infantis das escolinhas de Brasília. Douglas Ramos Sousa, o pai do miúdo de 10 anos, percebeu aí que tinha um prodígio em casa. E depressa começou a tentar fazê-lo saltar dos vídeos dos telemóveis para os olhos do mundo.

O miúdo de 10 anos é Endrick, a nova sensação do futebol brasileiro que tem impressionado no Palmeiras de Abel Ferreira e que esta semana se tornou o jogador mais novo a ser convocado para a seleção brasileira desde Ronaldo, já que tem apenas 17 anos. Nascido em julho de 2006, já assinou contrato com o Real Madrid e vai mudar-se para os merengues quando chegar à maioridade, já no próximo ano, num vínculo de três anos que terá ficado fechado nos 60 milhões de euros.

Antes disso, porém, Endrick era apenas o tal miúdo de Taguatinga, em Brasília. Ciente da qualidade rara do filho, Douglas Ramos Sousa publicou os tais vídeos no YouTube e começou a procurar clubes interessados. A busca, porém, tinha uma alínea: o clube que contratasse Endrick tinha de garantir que a família poderia mudar-se com ele, ou seja, teria de incluir na proposta uma casa para todos, uma escola para o jovem jogador e para o irmão e um trabalho para o pai.

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Corinthians e São Paulo mostraram-se interessados, mas só ofereceram ajudas de custo mensais. O Santos nem chegou perto, abrindo apenas a possibilidade de Endrick realizar um teste com a formação do clube. O Palmeiras enviou um representante a Brasília e aceitou as condições, garantindo uma casa para a família Sousa, uma escola para o jogador e um lugar na equipa de limpeza para Douglas. A escolha, assim como a total fidelidade, estava fechada.

“Foi a única coisa que pedi, que a família pudesse acompanhá-lo. E a história diz tudo. O Palmeiras abriu as portas ao meu filho, acolheu-me e deu-me trabalho, permitiu ao meu filho disputar uma Copinha com 15 anos. Tenho de demonstrar a minha gratidão ao clube, pela oportunidade de — não só o meu filho, mas toda a família — realizarmos um sonho. Temos os nossos princípios e a gratidão está acima de tudo”, explicou o pai do jovem jogador numa entrevista recente.

A partir do momento em que chegou a São Paulo, Endrick tornou-se uma espécie de mascote fora de campo e foi queimando etapas dentro dele. Jailson, antigo guarda-redes do Palmeiras, pagou por um implante dentário a um dos elementos da família. Felipe Melo, um veterano da equipa paulista, ajudou o jogador a fechar contrato com uma marca desportiva. E foi preciso esperar vários anos até que ambos soubessem que Douglas, o funcionário do Palmeiras, era também o pai de Endrick, já que a exigência de sigilo sobre a relação familiar foi um dos pedidos do progenitor.

Aos 14 anos, Endrick já jogava pelos Sub-17. Aos 15, estava nos Sub-20. Em 2021, num único ano, foi campeão pelos Sub-15 e Sub-20 e vice-campeão pelos Sub-17. Ao todo, na formação do Palmeiras, fez 171 golos em 175 jogos. Dono de um pé esquerdo brilhante, com uma estatura relativamente baixa e um poderio físico que impressiona, tem merecido as devidas comparações a um jovem Romário e até aos dias iniciais da carreira de Ronaldo, tornando-se rapidamente o nome mais sonante da próxima geração brasileira.

Depois de ajudar o Palmeiras a conquistar a Copinha, o mais importante torneio Sub-20 de São Paulo, ganhou preponderância mediática e Abel Ferreira foi pressionado a levá-lo ao Mundial de Clubes que decorreu em janeiro do ano passado. Na altura, o treinador português lembrou que Endrick tinha apenas 15 anos e que era importante não queimar etapas cruciais na evolução do jogador — sugerindo até uma viagem à Disneyland Paris com a família. O avançado demonstrou que ouviu e, enquanto o Palmeiras viajou para os Emirados Árabes Unidos, voou para França e foi mesmo visitar o parque de diversões.

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Com o pai, Douglas, nos festejos da conquista da Supertaça do Brasil no início do ano

A estreia na equipa principal só surgiu em outubro de 2022 e enquanto suplente utilizado numa goleada ao Coritiba: aos 16 anos, dois meses e 16 dias, tornou-se desde logo o jogador mais novo de sempre a representar o Palmeiras. Marcou os primeiros golos ainda nesse mês de outubro, ambos contra o Athl. Paranaense, e conquistou o primeiro título profissional da carreira ao ganhar o Brasileirão em novembro. No fim da temporada, de forma quase natural, foi eleito o jogador mais promissor do Campeonato.

Esta temporada, depois de ter sido muito utilizado no início das competições, registou alguma quebra de rendimento que foi rapidamente apontada pela exigente opinião brasileira. “Querem que resolva uma equipa inteira com 17 anos”, desabafou recentemente o jornalista Danilo Lavieri, que garante que consegue imaginar o recém-convocado no Mundial 2025. “A cabeça dele é boa. Não se vislumbra, não gosta de festa. Claro que gosta de uma graça, no TikTok, mas não tem desse absurdo como era Neymar. É um garoto humilde, um jovem muito talentoso, explosivo e com faro de golo”, acrescentou.

O período menos conseguido, porém, foi esquecido na semana passada. No Rio de Janeiro, o Palmeiras foi para o intervalo a perder 3-0 com o Botafogo. Endrick, que tinha sido titular, marcou dois golos na segunda parte e deu o mote para uma reviravolta impressionante da equipa de Abel Ferreira, que acabou por vencer 3-4 e tem agora os mesmos pontos que o Botafogo na liderança do Brasileirão (apesar de ter mais um jogo disputado). E tudo porque percebeu um cântico da maneira errada.

Palmeiras esteve a perder 3-0, venceu 3-4 e os jogadores continuam rendidos a Abel Ferreira: “Vamos ter de falar de novo dele”

“O Botafogo tem tudo para ser campeão, mas o Palmeiras é isso, nunca vai deixar de correr atrás. Uma coisa que ficou entalada em mim foi o pessoal da torcida… É óbvio que quando gritam ‘campeão’ no aquecimento fiquei querendo. É difícil falar em ódio no coração, mas a nossa torcida veio apoiar-nos e eu não ia deixar que eles gritassem que serão campeões”, explicou o jovem brasileiro na zona de entrevistas rápidas. O cântico que ouviu, porém, não era mais do que os adeptos do Botafogo a saudarem dois canoístas e uma remadora do clube que conquistaram medalhas nos recentes Jogos Pan-Americanos e que desfilaram no estádio antes do apito inicial.

Seja como for, agora no Palmeiras e futuramente no Real Madrid, algo é certo: Endrick vai sempre correr, lutar e marcar golos com o mesmo objetivo em mente. “Lembro-me de que uma vez estava sentado no sofá e ele disse que queria comer. Não havia nada no frigorífico, não havia nada no armário. Ele pediu, pediu e pediu, e eu disse que não tinha nada. Comecei a chorar e ele também. E ele disse-me: ‘Pai, deixa, eu vou ser jogador de futebol e tirar a gente dessa dificuldade'”, contou o mesmo pai que descobriu no YouTube a porta do mundo para um filho que ainda o vai conquistar.