É pouco provável que estivéssemos a falar deste livro se Henrique Raposo não fosse já conhecido de outras lides. Isto nada diz sobre o livro ou sobre o autor mas diz necessariamente alguma coisa sobre a leitura.

É certo que, num cenário de justiça ideal, só o texto devia contar; no entanto, é até chato de tão óbvio lembrar que um texto também tem o seu contexto. Da mesma maneira que seria absurdo escrever hoje um épico como se não existissem Lusíadas ou fazendo tábua rasa de toda a literatura pós quinhentista, também seria no mínimo ingénuo que o autor não contasse consigo próprio. É ridículo escrever como se não existisse uma tradição literária, apresentar como novas as convenções do romance realista ou escrever como se ignorássemos o fluxo de consciência; mas também é ridículo escrever como se ninguém nos conhecesse, como se ignorássemos a nossa própria tradição.

Ora, isso pode ser especialmente difícil quando essa “tradição pessoal” é muito marcada mas dentro de outro espectro. O estilo de Lobo Antunes é muito vincado, mas por isso mesmo não oferece grandes dificuldades quando vinca as páginas de um novo romance. Problemático é quando o estilo de um autor é muito vincado, mas dentro de um registo que obriga a modulações diferentes daquelas que o romance pede.

Henrique Raposo é especialista no registo curto, em oferecer uma tese em poucas palavras, em transformar um pequeno episódio numa ideia geral e em explorar o possível ponto de discórdia dessas ideias. Transforma assuntos familiares em assuntos políticos, encontra sempre, nos livros que lê ou nas séries que vê, o ponto que os integra nas maiores discussões do momento e fá-lo sempre como quem quer encontrar “a” grande tese, ou “a” grande ideia, que comanda aquilo que vê.

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Pouco interessa, para o caso, se o faz bem ou mal, se é um simplificador ou se simplesmente simplifica aquilo para que olha. O que interessa é que, embora tudo isto possa, de modos muito específicos, quadrar bem com a ideia de romance, há um traço fundamental, talvez o mais característico do estilo de Raposo, que é a antítese do romance: a sua extraordinária rapidez. A rapidez com que encontra conclusões e formula teses, forma opiniões e decide entre os vários polos de um debate. Mais, fá-lo com a convicção de um trator, de tal forma que acaba por ser isto que, justa ou injustamente, domina a sua imagem. Os admiradores louvam-lhe a assertividade, os detratores o simplismo, admirando-o ou detestando-o pela mesma razão, razão essa que ofusca os outros aspetos da sua personalidade estilística.


Título: “As Três Mortes de Lucas Andrade”
Autor: Henrique Raposo
Editora: Quetzal
Páginas: 640

Isto torna, assim, especialmente difícil que Henrique Raposo faça um romance com consciência de si próprio. Reforçamos: esta consciência não nos parece um pormenor; é um elemento central no modo como alguém lida com o romance. Podemos até dar vários exemplos, dentro do espectro alguém-que-é-conhecido-por-outro-tipo-de-escrita-que-decide-escrever-um-romance: Isabel Moreira, quando escreve o seu Ansiedade, decide criar uma espécie de alter-ego. De repente, de um estilo polémico mas com laivos de juridiquês académico, passamos para a escrita de um maldito, em que tudo pretende parecer saído de chofre, cheio de entranhas e de cheiro a esgoto. O romance soa obviamente artificial porque parte importante do estilo maldito é a sua autenticidade, que nos aparece comprometida quando estamos habituados ao registo não-ficcional da autora. Clara Ferreira Alves, no seu Pai Nosso, dá-nos um exemplo de sentido contrário da mesma inconsciência. Não fugiu à sua personalidade, mas apenas porque não parece vê-la como um problema ficcional. A protagonista passeia entre as grandes cidades europeias e a grande literatura, fixa-se entre o médio oriente e a literatura de igual qualificativo, e cada palavra parece apenas uma assinatura: mais do que uma ficção, trata-se da extensão de uma personalidade por páginas e páginas.

Há outros exemplos, mais defensivos, em que a consciência da personalidade transforma a ficção num pouco menos e num pouco mais que isso mesmo. Quem lê o Novembro, de Jaime Nogueira Pinto, não o vê bem como um romance: é, ao mesmo tempo, mais e menos do que uma ficção, mais e menos do que umas memórias do fim do Estado Novo e do princípio da democracia.

O romance de Henrique Raposo, verdade seja dita, não entra bem em nenhum destes exemplos. Há alguns aspetos da sua personalidade estilística que não couberam no romance e isso, em certo sentido, é uma vantagem. Não há uma tese explicada a cada três parágrafos, nem uma moral ou uma ideologia explícita a cada cena. Não que isto seja uma declaração teórica contra as teses ou contra a moral: trata-se apenas de um reconhecimento de que, provavelmente, os leitores de um romance não têm a mesma disposição que os leitores de um jornal para serem ensinados. Não podemos, ainda assim, dizer que este é um romance em que Henrique Raposo não se nota, o que também é uma vantagem. Nota-se logo na apresentação da personagem principal, que se quer capaz de desconcertar as várias “tribos”. Um dos grandes cavalos de batalha do cronista, a ideia de que a sociedade existe precisamente para ultrapassar as tribos, de que isto é mesmo um dos processos básicos da civilização, aparece assim no romance, de uma forma que se pode considerar legítima. Não aparece na sua forma habitual, mas pode, de facto, ser uma ideia romanesca.

Ao mesmo tempo, a sua propensão para a “tese”, impede o romance de se tornar apenas uma história, o que também pode ser bom. Henrique Raposo gosta da ideia de um estilo direto, sem grandes floreados e sem as divagações filosófico-poéticas que encontramos em tanta da literatura mundial; este gosto, porém, traduziu-se em muitos autores numa completa inconsequência daquilo que escrevem. É apenas uma “ficção”, uma “história”, que participa do desejo infantil de entreter, apenas. Nesse sentido, o seu tique cronista de discutir a partir de qualquer coisa é neste caso uma bênção. Henrique Raposo quer escrever um romance direto, mas não quer apenas contar uma história. Isso, dado o panorama geral, é bom.

O que não é tão bom, contudo, é que todas estas intenções e primícias prometedoras esbarram numa coisa fundamental: é que Henrique Raposo não tem bem um romance para escrever, tem o cenário de um romance. O cenário é interessante: trata-se da gesta do abandono rural, a migração dos campos para os subúrbios, as histórias de ascensão social e, até, uma certa experiência de isolamento intelectual própria do mundo contemporâneo. No entanto, é apenas um cenário. Mesmo a vida das personagens parece serva deste cenário. Não encontramos uma história individual no rapazito, acabado de chegar da aldeia, que passa com medo pelos rufias. A história que Henrique Raposo conta parece sempre ser a história de muita gente. E se isso é o ideal num livro de História, se pode até ser importante num romance, é apenas um dos lados necessários do romance. É como se o lado mais controverso da personalidade estilística de Henrique Raposo não tivesse desaparecido do romance, mas sim insuflado, a ponto de se transformar noutra coisa.

Henrique Raposo quis escrever uma espécie de épico da democracia; o principal problema dos épicos é que, como quase desapareceram da literatura, conhecemos apenas os bons e não aprendemos com as falhas dos maus. Ao ler o Primeiro Cerco de Diu, de Francisco de Andrade, ou a Hespanha Libertada, de Bernarda Ferreira de Lacerda, o que salta à vista é precisamente a impessoalidade. O épico está feito para consagrar um povo ou um movimento da história, mas do mesmo modo que o lirismo não sobrevive fechado sobre si próprio, o épico não se aguenta se for muitas histórias ao mesmo tempo. Henrique Raposo identificou bem o problema do romance que não tem nada para dizer, mas caiu, de certa maneira, no problema oposto: o de ter apenas alguma coisa para dizer, faltando-lhe qualquer coisa de particular.

Ou seja, com o mesmo material, Henrique Raposo conseguiria provavelmente fazer um interessante livro de História contemporânea; percebe-se, contudo, aquilo que o levou a optar por fazer disto um romance. É que há, no livro, um lado simbólico que de facto quadra melhor no romance e em que Raposo escora a maior parte dos seus momentos poderosos. A grande impressão estilística é dada por este lado simbólico que parece revestir todas as descrições de mais do que aquilo que elas são.

Sobre este aspecto, porém, há três coisas que nos parecem importantes. A primeira, é que quando tudo é simbólico, os símbolos deixam de ter valor. Se cada cena remete para mais do que aquilo que é, deixamos de ter símbolos. Tudo pode ser uma hierofania, mas nem tudo pode ser uma hierofania ao mesmo tempo, porque para haver sagrado também tem de haver profano. Ora, a toada épica deste livro elimina o profano, nada é individual, a sua própria História: tudo tem um sentido geral.

Além de não ser possível que tudo seja símbolo, não podemos ter símbolos de tudo ao mesmo tempo. O índice do livro é, nesse particular, revelador: os capítulos têm nomes como Adamastor, Job, Judite, Leviatã, O pequod e o cacilheiro, O degelo de Dante ou O livro de Rute. A intenção – e até uma certa megalomania que não é boa nem má, a ambição pode ser louvável – percebe-se: remeter a acção para certos símbolos, ligar, de alguma maneira, a história de “Lucas Andrade” à de Moby Dick ou à do livro de Job; no entanto, alguém julga possível concentrar, na mesma história, tantos dos arquétipos mais poderosos da história da literatura? Alguém julga possível fazer jus a Job e a Rute, a Dante e a Melville num único livro? É verdade que a menção destes nomes endossa a narrativa, lhe dá uma aura diferente; o problema do símbolo é que a história é também uma interpretação desse símbolo. Chamar Jonas a um capítulo não aproxima apenas a história do rapaz no subúrbio da história do profeta – é também uma interpretação da história do profeta, e é por isso que os símbolos e as referências devem ser usados com cuidado. Não apenas porque atiram o leitor para fora do livro – afinal, se está apenas a dizer o que já foi dito por outros, porque é que não lemos apenas esses outros? – mas sobretudo porque, além de elevarem o livro, também rebaixam o arquétipo: tornam-no naquilo que está a ser escrito. É claro que Henrique Raposo não quer reduzir a Bíblia e Dante e Melville às Três Mortes de Lucas Andrade; mas é precisamente porque a ambição reduz aquilo que queremos atingir à medida que atingimos que existe um certo pudor em invocar aquilo que para nós é sagrado.

É difícil dizer que As Três Mortes de Lucas Andrade é um mau livro, mas também é difícil dizer que é um bom livro. Não está certamente à altura das suas ambições, e estas são tão descaradas que menorizam o livro, o tornam pior do que aquilo que poderia ser. Mas também é verdade que as suas ambições o atiram constantemente para cima, fazendo dele um livro melhor do que o enredo, por si só, conseguiria.