Na narrativa de Rebentar, que é compacta, o leitor tem acesso à história de Ângela, cujo filho, Filipe, desapareceu 30 anos antes, aos 5. Hoje, estando ainda vivo, seria um desconhecido para a mãe que não pára de o procurar e o lembrar. A premissa do livro é não essa procura, mas a desistência – o momento em que a mãe aceita que o filho não existe mais e em que decide não mais procurá-lo. É que, mesmo que esteja vivo, o miúdo que lembra transformou-se num anónimo igual a qualquer anónimo.

Do presente, o leitor, que acaba de cair no drama, tem acesso à tragédia com alcance no passado – 30 anos de passado. A partir do momento em que a decisão é tomada, há incursões na memória: no dia do desaparecimento, nos anos de busca, na vida cristalizada, no quarto de criança ainda à espera. O desaparecimento, ao contrário da morte, não põe um ponto final – é um interregno que se estende, assente numa esperança, consumindo, desesperando; é a vitória da dúvida sobre qualquer hipótese de conclusão, de reparação, de decisão. Por um lado, há a ideia de que a esperança pode ser vaga; por outro, parece ser impossível existir além dela.

Escrito na primeira pessoa e no presente do indicativo, o romance vai explorando um estado de consciência que não se desliga da realidade. Em vez disso, temos, em simultâneo, a vida a acontecer ao lado: a compreensão ou incompreensão pela decisão, a decisão sobre o que fazer ao quarto cristalizado, a constituição da família, que vai mudando com a chegada de novos bebés. Pondo-se na cabeça de Ângela, Rafael Gallo descreve-a a partir de fora, embora o leitor siga também apenas essa cabeça, não se sentindo a distância da terceira pessoa. Isto, aliado à opção do tempo narrativo, pode criar alguns problemas técnicos, e, por vezes, sente-se que se está perante uma prosa parada, aguentada por um tom permanentemente cansado, mas a verdade é que a mão narrativa é segura e o autor aguenta a prosa coesa até ao fim.


Título: “Rebentar”
Autor: Rafael Gallo
Editora: Porto Editora
Páginas: 264

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Não é coisa pouca aguentá-la, uma vez que a estrutura narrativa não assenta num enredo claro, e essa ausência não mói nem falta. Há, por parte de quem lê, um permanente acompanhamento de um sofrimento, em que até os silêncios dizem – dizem, por exemplo, que são o longo interregno da espera pelo que não se sabe se vai chegar. Nisto, a personagem de Ângela está bem construída: procura respostas e não as encontra, num exercício de exploração da subjectividade. Ao longo do livro, vemos os 30 anos dedicados à esperança: depois de ficar sem o filho, Ângela parou de trabalhar e afiliou-se a instituições de procura de crianças desaparecidas. Pelo caminho, não teve mais filhos – a vida voltava-se apenas para o passado, e a mera ideia de futuro já sabia a insulto, a desistência. Por isso, ao dar-se essa reviravolta, ao entender-se que aquela criança não existia mais, há também um conflito entre a mãe que resolve tentar respirar e a expectativa de quem não lhe confere esse direito socialmente.

Nas partes mais contundentes do romance, estarão os momentos de supostos encontros entre crianças desaparecidas (agora adultas) e as mães. Em programas de televisão, são apresentados às mães em luto homens feitos, sendo-lhes dito, antes de haver verificação de ADN, que aquele é o filho tal ou tal. As mães deparam-se com desconhecidos – o momento inaugural e reparador e feliz não chega. E depois tudo se cobra quando o ADN traz outra realidade. Para Ângela, começa a ser igualmente perturbadora a possibilidade de lhe dizerem que um desconhecido é o filho, que não possa, por isso, preservar a memória da criança que teve e conheceu e perdeu:

O lugar da criança deveria ficar vazio, em vez de ocupado por um intruso. A lacuna deixada por Filipe havia guardado sonhos, dado espaço a eles; com a ocupação pétrea pela imagem da versão envelhecida, nem mesmo isso teria continuidade. Ângela, tomada por uma espécie de ressaca, viu-se diante de um horror reverso: a repulsa à ideia de que alguém daquele tipo fosse encontrado e dissessem ‘aqui está o Filipe’. A possibilidade se tornou demasiado real e monstruosa na mesma medida.” (p.70)

Todo o romance gira em torno da expectativa do reencontro com o conhecido, e nunca sobre o desaparecimento em si. Assim, Rebentar versa sobre o desaparecimento, o luto, o desalento, nunca cedendo à tentação de atar os pontos, de explicar ao leitor o problema, de apresentar a papa – e, nisto, aproxima-se da realidade, esventrando em vez de dar a vida explicadinha ao leitor. Assim, da mesma forma que a mãe não sabe como é que Filipe desapareceu, o mesmo se passa com quem lê; ou que não sabe quem o levou; ou que não faz ideia do que lhe aconteceu depois daquilo, que vida teve depois do dia em que a sua mão largou o filho; ou que não sabe sequer se o filho de cinco anos é agora um homem de 35 ou se é alguém que já está morto; ou, se morreu, em que circunstâncias e quando. Ao mesmo tempo que Rafael Gallo explora o vazio de Ângela, o leitor também tem acesso ao vazio da ausência de respostas, e é aqui que se cria o vínculo empático. É que, finda a leitura, não há uma redenção, um arco fechado, uma resposta. Há, isso sim, a vida, com o que tem de inconclusivo, trágico, e com o que traz de vontade de sobrevivência mesmo no meio dos mais despedaçados destroços. Com isto, o fluxo narrativo, afunilando em Ângela, explora e espraia até não haver camadas entre leitor e personagem. A partir daí, nem importa qualquer consideração moral que o leitor pudesse fazer – não é isso que importa no jogo literário. Recebe-se a vida de Ângela como coisa em bruto, mas sublimada nas suas múltiplas subjectividades, e o que sobra para o leitor é descobrir que aquela vida é assim e mais nada.

O principal mérito na prosa de Rafael Gallo será o da decisão sobre o foco, que nunca se vira para a resposta fácil do enredo. Em vez disso, são 262 páginas de dúvida. Um bálsamo para quem vê na literatura uma busca e não uma resposta.

A autora escreve segundo com o antigo acordo ortográfico.