James Marsh, realizador de filmes como A Teoria de Tudo ou Homem no Arame, assumiu a missão de criar uma obra biográfica sobre Samue Beckett, figura ímpar da literatura e da dramaturgia do século XX. O guião foi escrito pelo escocês Neil Forsyth, vencedor de dois Baftas. Palavras ditas ou escritas pelo autor irlandês fora das peças que assinou não foram incluídas. E fazer uso da obra de Beckett para lá de limites bastante controlados também esteve totalmente fora de questão. Nasceu assim Dança Primeiro, Pensa Depois, título “roubado” a uma das frases-chave da peça À Espera de Godot de Samuel Beckett. O filme estreou-se esta quinta-feira nas salas de cinema em Portugal e o Observador falou com o realizador em Lisboa.
“Os filmes podem escolher-te. Foi o que aconteceu com este, depois do Neil Forsyth me ter dado o guião para ler durante a pandemia. Foi um tempo durante o qual estivemos afastados uns dos outros e a distância é um dos grandes temas na obra de Beckett, obra que estudei quando era jovem e que voltei a estudar agora. Beckett era um pessimista, não sei se era feliz, mas era pessimista sobre a natureza humana e as suas possibilidades”, argumenta o realizador.
Esse pessimismo é notório em vários momentos do filme (por vezes até na estrutura da narrativa, como se o realizador estivesse sempre a pedir desculpa ao público): quando o jovem dramaturgo enfrenta a Segunda Guerra Mundial, na resistência francesa, no meio da qual vivia e estudava depois de se libertar das cruas garras da mãe, com quem manteve sempre uma relação instável e intensa. Mãe que não queria o sucesso do filho, mas Beckett foi para Paris aprender com outro grande nome da literatura, James Joyce.
[trailer oficial de “Dança Primeiro, Pensa Depois”:]
Mas o filme não começa assim. Estamos na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Literatura em 1969 da qual um Beckett mais velho (interpretado por Gabriel Byrne) foge da para se ir encontrar com um seu duplo, em jeito de confessionário existencial onde os dois vão revisitar vários momentos marcantes da vida para entregar o prémio. Ou à mãe, ou em homenagem a Alfred Péron, capturado e morto pelos nazis, ou às duas grandes mulheres da sua vida.
Se À Espera de Godot nos fala de isolamento e da inércia humana, James Marsh quis mostrar o quão viva foi a vida do escritor irlandês dentro do absurdo dos tempos que viveu. Tanto no pós-guerra, com a desilusão, o questionamento e a dor que daí adveio, como na vida amorosa, feita de complicadas relações: Suzanne Dechevaux-Dumesnil, sua confidente e “gestora de carreira”, e Barbara Bray, a amante, editora, tradutora e produtora da BBC que ajudou a catapultar nomes como Marguerite Duras ou Jean Paul Sartre.
“Esse pessimismo de Becket com o mundo pode ter nascido destas suas experiências. Em À Espera de Godot parece olhar para o pós-guerra na Europa. O trabalho dele ressoa no momento em que vivemos. Basta olhar para a eleição de Donald Trump ou para o que aconteceu ao Reino Unido durante e depois do Brexit. É absurdo. Ainda assim, parece que estamos adormecidos ou a ignorar essa realidade. É interessante voltar a ele, existem muitas semelhanças com os dias de hoje”, diz-nos o realizador, como quem aponta o tal “absurdo” do “agora” para traçar um paralelismo com o absurdo do tempo de Beckett.
Apesar desta relação que identifica com facilidade, James Marsh não consegue encontrar uma resposta para a pergunta que o próprio faz: “Como é que Samuel Beckett não se transformou numa estrela pop?”. Lembra outros nomes, de autores pouco óbvios para o estrelato popular (aponta George Orwell, por exemplo), ainda que reconheça que o trabalho de Beckett foi muito radical para a altura. O que poderia ser suficiente para, na era das redes sociais, o tornar numa espécie de estandarte contra o conservadorismo, por exemplo? “Ele mudou o teatro dramaticamente, mas não sei porque é que não ficou pop mesmo tendo estes aspetos da vida que foram tão interessantes”, diz. Marsh lança a hipótese de que se Beckett não fosse escritor, a história poderia ter sido diferente. “Acabamos por ficar sobretudo à espera de Godot. Existe, pelo menos, essa expressão que significa que nada acontece. É muito usada no Reino Unido.”
Sendo um dos focos do filme a relação de Becket com duas “extraordinárias e inteligentes” mulheres, Marsh faz questão de esclarecer que o dramaturgo “não era nenhum misógino que apreciava trair o sexo feminino”. “Gostava muito de mulheres, mas não foi nenhum famoso que só queria estar com raparigas mais novas”, assegura. Apesar do realizador inglês ter ficado “frustrado” por não conseguir ter acesso à obra de Beckett, parece ter querido manter o absoluto respeito pela sua vida.
Não aprofundar o método, a sua escrita e as peças do autor é que acaba por configurar um certo vazio narrativo. “Demos o nosso melhor, mas foi frustrante, sim.” Se faz sentido, numa época repleta de conteúdo em streaming, continuar a apostar-se em biopics deste género? James Marsh responde que sim. Com ou sem direitos de autor. “O cinema é uma experiência em sala, coletiva, que espero que resista. O que é difícil agora é fazer um filme de baixo orçamento, ainda que os meios de produção estejam mais acessíveis. Não há desculpas para não se fazer um filme”, finalizou.