Algures num passado bem recente, prometeram-se mundos e fundos com os formatos físicos digitais. Os DVD, depois os Blu-ray, seriam essenciais para se usufruir dos conteúdos audiovisuais em casa. Ter o objeto, guardá-lo, abraçar a melhor qualidade de imagem e som e aceitar um acumular de extras (os filmes e os episódios comentados) que valiam o dinheiro investido. Existia o objeto singular, o DVD, o Blu-ray, fosse com um único filme ou com mais do que uma rodela, a fim de haver espaço suficiente para uma temporada inteira numa humilde caixinha. As boxsets não demoraram, objetos mais gordos, com mais coisas, por vezes com extras físicos, noutras em caixas de metal, em algumas com tudo isso junto, para fazer render a massificação de umas quantas marcas de mobiliário e a necessidade de ter mais prateleiras.
Elas ainda existem, ainda há quem as queira, quem as compre (as caixas e as prateleiras, claro). Talvez não se vejam tanto nas lojas, se ainda entrarmos nas loja. Ainda estão lá, não necessariamente por resistência ao streaming, mas porque haverá sempre algo transformativo num objeto. O que existe, cada vez menos, são séries que fiquem bem nessas boxsets. Ou que precisem delas. Porque o conceito “para se guardar” ou mudou ou desapareceu completamente. Isto a propósito de Masters Of The Air, irmã mais nova de Band Of Brothers e The Pacific, séries que se estrearam noutra vida (2001 e 2010, respetivamente). O que agora nos chega é um capítulo recém criado, que regressa aos eventos da Segunda Guerra Mundial, ficcionados por um esforço de produção que une Tom Hanks, Steven Spielberg e Gary Goetzman e que, de certa forma, é a terceira continuação espiritual do filme O Resgate do Soldado Ryan (1988).
[o trailer de “Masters of the Air”:]
Séries como estas foram feitas para estar na prateleira. Altas produções históricas, cingidas à ideia de contar um momento, com elencos grandes, momentos de ação bem escolhidos e doseados, que fazem o espectador pensar “como terá sido na realidade?”, ao mesmo tempo que lhe garantem o alívio de não ter estado lá para ver. Dizemos “na prateleira” não para serem esquecidas, mas para serem olhadas, pensadas como um todo, para que peguemos nelas e as vejamos de uma ponta à outra sem preocupação com a narrativa, antes assumindo a coisa como um “documentário ficcionado” porque, no final de contas, sabe-se qual o desfecho da Segunda Guerra Mundial.
Os nove episódios de Masters Of The Air estreiam-se catorze anos depois de The Pacific. O mundo da televisão — e do consumo televisivo — é bem diferente. Este tipo de série já não tem lugar na HBO, foi a Apple a pegar neste assunto pendurado e a dar-lhe luz verde. A pandemia atrasou significativamente a estreia, mas a adaptação do livro homónimo de Donald L. Miller, imaginado para televisão pela dupla John Shiban (Breaking Bad, Ficheiros Secretos, Ozark, entre outros) e John Orloff (que esteve lá no início, em Band Of Brothers) é tudo aquilo que poderíamos desejar, juntando mesmo um conjunto de realizadores invejável, composto por Cary Joji Fukunaga (que entre muitas coisas, tem a primeira temporada de True Detective no currículo), a dupla Anna Boden e Ryan Fleck (com uma boa carreira indie e Captain Marvel no CV), Dee Rees (”Pariah“) e Tim Van Patten (que esteve envolvido em muita coisa boa da HBO nas últimas três décadas). Isto além de um elenco valioso, com Austin Butler, Callum Turner, Anthony Boyle e Barry Keoghan nos principais papéis.
Chega de coisas chatas, levantemos este avião até onde interessa: Masters Of The Air é um regalo. O mundo não é o mesmo desde a estreia de The Pacific, nem o cenário televisivo. E pode-se usar o argumento fácil de que há sempre espaço para séries de qualidade, mas a verdade é que não é bem assim. Masters Of The Air ultrapassa esse fator de inerente qualidade e faz uma daquelas coisas que são raras hoje e nas quais já deixámos de pensar: é uma série histórica sem artifícios narrativos para nos agarrar a qualquer coisa lamechas. É uma série da Segunda Guerra Mundial sem aquela expectativa de que o espectador tem de encontrar ali um significado para a sua vida, por mais absurdo que seja relacionar a existência daquelas pessoas com a nossa (e é o que muitas séries do género hoje tentam).
O mundo mudou, o ADN da linha de montagem destas produções não. Num tempo em que as minisséries gostam de se vender como “filmes com maior duração”, Masters Of The Air acontece seguindo a matemática simples de nove episódios, ainda que —e é preciso admiti-lo — conte com os valores de produção de um filme (250 milhões de dólares). Não uma história que só poderia ser contada num filme de nove horas. Aqui há a consciência de capítulos, etapas, de cada episódio acontecer dentro do seu próprio ciclo estrutural e levar-nos aos céus para nos lembrar que a vida destes rapazes acontecia sobretudo no ar. O ano é 1943 e ao longo de nove episódios acompanharemos o 100th Bombardment Group, também conhecido como “The Bloody Hundredth”, grupo de bombardeiros B-17 da Força Aérea Americana estacionados no litoral inglês e com missões específicas para atacar alvos nazis na Europa continental.
Morreram muitos, tiveram o seu papel no desenvolvimento da guerra a partir de 1943 até ao seu término. Há muitos enjoos, erros (a série, basicamente, começa com uma combinação de ambos), mas uma parte substancialmente interessante da história acontece em terra, na, agora familiar, construção de relações entre soldados que mal se conheciam, através de situações a que são expostos e que fortalecem laços únicos. É violenta q.b., as missões aéreas — e não necessariamente só os combates — são magníficas, mas o que se instala na apreciação do espectador muito facilmente é o que acontece fora disso: as relações, os diálogos, as piadas sobre as alcunhas de alguns deles. A epopeia de ir para longe de casa e como um lugar desconhecido se torna rapidamente em algo que sempre conhecemos.
Masters Of The Air é imediata, mesmo para quem nunca tenha visto Band Of Brothers ou The Pacific. Talvez porque a narrativa está assente numa ideia de intemporalidade — o bem contra o mal, a superação humana, a camaradagem, o medo e o luto — a fórmula funciona hoje como o faria há 10 ou 20 anos. E funcionará amanhã, depois de amanhã e daqui a 20 anos. Televisão clássica? Naturalmente. Se fossem outros tempos, já estaria a ser preparada uma boxset em metal, com seis discos, uma catrefada de extras e o correspondente espaço na prateleira para a guardar daqui a seis meses.