É um dos autores mais vendidos da produção coetânea, e debruça-se neste volume sobre a vida de escritor: o processo, os temas, o público, o percurso, a estrutura, as personagens. Murakami estará longe de ser dos maiores do seu tempo, mas tem ido do Japão para o mundo inteiro. Por sua vez, Romancista como vocação estará longe de mostrar a chave do fenómeno popular, inclinando-se mais para mostrar a ligação entre este escritor e esta escrita.

Sem grande profundidade, num certo tom de leveza, só como quem conta a vida, sem outras pretensões, o autor japonês vai discorrendo sobre o seu método e o papel da escrita na sua vida. O livro não fornece um manual de escrita, não menciona sequer as estratégias ou as técnicas narrativas; em vez disso, tem um tom de conversa, com frases escorreitas que não exigem esforço ao leitor nem ensinam nem debatem. Aliás, o autor parece ter pouca vocação para isso, mostrando-se, ao longo do livro, que é curto e se divide em 11 capítulos, quase inseguro: o seu percurso é aquele como podia ser outro; os seus romances venderam milhões de cópias, mas o autor insiste em dizer se não sabe se são “bons”; o seu relato é pessoal, querendo ir à verdade dos seus dias e mais nada.

Quem se habitua ao Murakami de ambientes surrealistas poderá espantar-se com a sua simplicidade de pensamento, com o seu quotidiano organizado, com a sua aparente acalmia perante a vida – com a sua falta de loucura ou de lampejo. Ao mesmo tempo, quem nada sabe sobre a obra do autor japonês, finda a leitura deste livro, que foi escrito mais de 30 anos após a publicação de Ouça a canção do vento, o seu primeiro romance, continuará igual, uma vez que o autor, ainda que aflore este ou aquele romance, não o explica, não o explora, não o mostra ao leitor sob as lentes que só ele pode usar.


Título: “Romancista como vocação”
Autor: Haruki Murakami
Tradução do inglês: Inês Rocha Silva e Maria João Lourenço

Editora: Casa das Letras
Páginas: 232

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ao longo da leitura, o texto contrasta com o título. A “vocação”, afinal, parece uma casualidade. A vontade de escrever romances parece mais a ideia de que é possível fazê-lo do que um desejo que se impõe. Ao mesmo tempo, a continuidade do ofício parece ser consequência de um prazer comedido, ao mesmo tempo que de um eterno espanto que se faz durar entre um projecto e outro. Dentro disto, o autor advoga que o talento não é uma condição sine qua non para a prática da escrita, mas que escrever durante muito tempo é uma tarefa difícil que nem todos aguentariam.

Ou seja, no seu entender, escrever está ao alcance de qualquer um, desde que seja feito de forma pontual. Claro que isto é para lá de questionável, e que é até difícil entender esta posição, uma vez que parece subtrair à equação da escrita a necessidade de uma escola, de uma técnica, da aprendizagem da manipulação do leitor, do tempo da narrativa, da construção das personagens. Com o que Murakami escreve, dá ideia de que a escrita é um acaso, o que significa que a própria literatura também o é. Parece haver ali, no seu entender, mais sorte do que técnica, mais subjectividade do que objectividade, ainda que o autor se foque na necessidade de disciplina. O que falta entender, enquanto se lê, é como ou o que se disciplina na ausência de uma escola e de treino.

Ao afirmar que se escreve um romance quase sem se pensar no assunto (“praticamente todas as pessoas são capazes de escrever um romance para passar o tempo”, “é possível a um autor com um pouco de talento escrever um excelente romance à primeira tentativa”), Murakami apresenta o ofício da escrita como se tal passasse por martelar teclas e pouco mais; como se a literatura fosse artesanato e não arte. Nisto, contrasta com outros que, reflectindo sobre a escrita, mostraram os anos – as décadas – necessários para a aprimorarem e limarem, como é o caso de Gabriel García Márquez em Viver para contá-la.

O relato de Murakami é de tal forma pessoal, quase sensorial, que quem esperar uma espécie de Escrever, de Stephen King, sairá defraudado. No livro do autor norte-americano, há um debate sobre como tornar a escrita mais funcional, que vai desde a duração dos parágrafos à utilização dos advérbios de modo ou às formas de colocar o leitor dentro da acção. Murakami passa, no seu livro, às margens de tudo isto, escrevendo antes um livro que parece mais inclinado a satisfazer a curiosidade dos leitores sobre o quotidiano da escrita, mais do que sobre os seus mecanismos, e isto apesar de se focar em elementos da sua rotina de escrita, que passam não só por correr uma hora por dia (para limpar a cabeça e preparar o corpo), mas também por deixar descansar o texto e fazer leituras de corte e outras de retoque.

Para este livro, o objectivo do autor foi criar a consistência narrativa de um discurso. Assim funciona, sem solavancos, e o leitor tanto ouve quanto lê, uma vez que perdura por todo o livro um tom descontraído de conversa.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.