A realizadora Cláudia Rita Oliveira estreia na quinta-feira um documentário sobre abuso psicológico e violência doméstica, a partir da história da mãe, que é também um retrato sobre o sistema judicial e social português.

“No Canto Rosa” é um filme em que a mãe da realizadora Cláudia Rita Oliveira dá a cara e o testemunho sobre o fim de uma relação e sobre o processo judicial movido contra o ex-companheiro, condenado em 2021 por abuso psicológico e violência doméstica.

“Cada 2 passos tinha de olhar para trás com medo”

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“Este filme é sobre presas e predadores numa sociedade patriarcal. Somos a mesma espécie, acho que não devia haver presas e predadores, [mas] acho estranho que as coisas socialmente estejam organizadas dessa forma e essa reflexão é feita através da história da minha mãe”, contou a realizadora à agência Lusa.

O documentário estrutura-se a partir de uma entrevista à mãe, feita num canto simbolicamente pintado de cor-de-rosa, na qual descreve como era a relação, como se deteriorou, como se sentiu no processo de separação, porque é que decidiu pedir ajuda e avançar com uma queixa-crime.

“A entrevista foi uma espécie de ponto de situação. [Ela] Dizia que não era vítima e a palavra vítima é perversa. A entrevista foi no sentido de ela assumir o lugar onde estava, numa posição de fragilidade”, explicou a realizadora.

Há pormenores que são deixados de fora, como o nome do agressor, locais ou dados de maior intimidade por questões legais do processo judicial, conduzido ‘pro bono’ pelos advogados Ricardo Sá Fernandes e Inês Rogeiro.

No filme, a realizadora registou ainda o quotidiano da mãe, que passou a viver com um botão de pânico e com um diagnóstico de ansiedade e depressão, e juntou também filmagens de arquivo da família e uma pequena nota biográfica, dos relacionamentos anteriores da progenitora.

Cláudia Rita Oliveira acrescentou ainda um contexto social, de um tempo em que havia crimes de desonra, durante o Estado Novo, até à consagração de direitos das mulheres na Constituição de 1976, já em democracia.

É ainda mostrado o documento oficial que, nos anos 1970, conferiu o divórcio do primeiro casamento da mãe, numa intromissão do Estado na intimidade do casal.

“Eu ponho ali aquele documento para mostrar como o Estado tem o poder de decidir sobre o corpo da mulher, se teve ou não relações. É o Estado que está a fazer uma apreciação sobre o que ela deve ou não fazer. O Estado diz como é que a mulher se deve comportar”, lamentou a realizadora.

Para Cláudia Rita Oliveira, o filme testemunha ainda um sistema legal que nem sempre protege as vítimas.”Nós temos leis que são bastante progressistas, mas as pessoas que estão à frente, a receber, não estão preparadas, ou não há pessoas suficientes para dará apoio a situações como esta. E nos meios mais pequeninos… É um sistema que está minado. Apesar das leis, não protege a vítima”, criticou.

O ex-companheiro da mãe foi condenado em 2021 a dois anos em meio de prisão, com pena suspensa, a mãe “perdeu o medo e a culpa”, mas continua a ter um botão de pânico e “está uma pessoa mais fechada e isolada”.

“O canto rosa”, a segunda longa-metragem de Cláudia Rita Oliveira, foi concluída em 2022 e sucede ao documentário “Cruzeiro Seixas – As cartas do rei Artur” (2017).

A realizadora espera que o filme ajude ao debate sobre violência doméstica, mas quer fechar este capítulo e seguir caminho.Com “O canto rosa”, a realizadora abriu a produtora Madame Filmes, para trabalhar outros filmes sobre questões de género.

“O filme marcou-me naquilo que sou como pessoa e no que quero fazer profissionalmente. Tenho dois projetos, estou a escrever e a fazer investigação e tem a ver com questões de género. (…) Quero fazer filmes sobre os direitos das mulheres, cis ou trans. Porque agora despertei para essas questões”, disse.

Desta forma, um dos projetos que vai desenvolver é com o Coro das Mulheres da Fábrica, de Coimbra, um projeto de canto e de partilha. “Elas consideram-se operárias da voz”. Outro dos projetos, já mais adiantado, em fase final de rodagem, é o documentário “Mulheres de Abril”, de Raquel Freire, sobre “as mulheres que estiveram atrás da revolução de Abril” de 1974.