A diretora artística do Museu de Arte Contemporânea do Centro Cultural de Belém (MAC/CCB), Nuria Enguita, considera que a Coleção Berardo, que acompanha um século da arte moderna, “está à altura de muitos museus europeus”.

“A coleção Berardo tem um peso histórico. Não é que seja mais ou menos importante, mas a arte moderna, das vanguardas históricas, é importantíssima, e está à altura de muitos museus europeus. É importante por isso”, avaliou a responsável entrevistada pela agência Lusa.

Nuria Enguita, historiadora e curadora espanhola, foi selecionada num concurso internacional lançado no ano passado pelo CCB para a direção do espaço museológico que renovou a sua identidade em outubro de 2023, após o fim do acordo de 15 anos entre o Estado e o colecionador José Berardo.

Em outubro próximo completa-se um ano sobre a inauguração do MAC/CCB, que reúne a Coleção Berardo – à guarda do CCB por decisão judicial, no âmbito de um processo da banca contra o colecionador José Berardo – acervo da Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE), a Coleção Ellipse, adquirida pelo Estado, e a Coleção Teixeira de Freitas, deixada em depósito pelo colecionador.

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“Estas outras coleções são mais recentes, mas também são muito importantes enquanto arte contemporânea, e é possível introduzir relações interessantes entre elas. Esse arco histórico tão grande é uma riqueza que quero explorar”, acrescentou a diretora sobre os acervos depositados no CCB.

Questionada pela Lusa sobre a frequência dos pedidos de museus e entidades culturais para empréstimo de obras da Coleção Berardo, a responsável revelou que são constantes: “Isso também é uma riqueza do museu. Temos pedidos a cada mês, para exposições e museus muito importantes. Os pedidos são avaliados e decide-se”.

“É sempre uma negociação, mas é importante emprestar obras importantes a exposições importantes, com todas as garantias”, apontou a historiadora espanhola de 57 anos que esteve anteriormente à frente do Instituo Valência de Arte Moderna (IVAM) e do Centro de Arte Bombas Gens, ambos em Valência, Espanha.

Na opinião da curadora, as coleções em depósito no MAC/CCB são muito abrangentes” e pretende trabalhá-las no sentido de “tentar contar novas histórias”.

O acordo subscrito por José Berardo e o Ministério da Cultura para a manutenção do Museu Coleção Berardo foi denunciado em 2022, depois de a instituição ter funcionado quase 16 anos com parte das exposições baseadas inicialmente em 862 obras, avaliadas em 316 milhões de euros pela leiloeira Christie’s em 2006.

A coleção reúne desenvolvimentos artísticos no mundo ocidental, no decurso do século XX, e inclui, entre outras, obras de artistas estrangeiros de renome como Jean Dubuffet, Joan Miró, Yves Klein, Piet Mondrian, Duchamp, Chagall, Picasso e Andy Warhol, e de portugueses como Rui Chafes, Fernanda Fragateiro e Julião Sarmento.

“Há que pensar nas histórias não contadas, e a mim, como historiadora, interessa-me muito esse valor do que somos e o que fomos”, comentou ainda, a propósito da “riqueza impressionante” das várias coleções no MAC/CCB.

Por decisão judicial relativa a um processo da banca contra o colecionador e empresário José Berardo, por dívidas de cerca de um milhão de euros, a coleção encontra-se à guarda do CCB.

Questionada sobre a possibilidade de, futuramente, o colecionador poder reaver a coleção, Nuria Enguita disse: “Não tenho uma bola de cristal, não sei o que vai acontecer. Essa será uma decisão do Estado, mas aconteça o que acontecer, a minha atitude é trabalhar com o que tivermos. As coleções estão em depósito, podem ser levadas. Cada momento é diferente”.

Atualmente a diretora artística do museu está a preparar uma exposição para ser inaugurada em outubro, na celebração de um ano do novo museu instalado no CCB, que aguarda pela construção de dois novos módulos.

Desde 27 de outubro de 2023 até 07 de julho último, o MAC/CCB recebeu um total de 411.311 visitantes, segundo os números revelados à agência Lusa.

As exposições mais visitadas foram “Coleção Berardo. Do 1.º Modernismo às Novas Vanguardas do século XX”, com 119.807 visitantes, “Objeto, Corpo e Espaço”, com 102.734 entradas, e “Ou o Desenho Contínuo. Desenhos da Coleção Teixeira de Freitas”, com 94.835 visitantes.

Diretora do MAC/CCB quer museu “vivo e habitado” por todos os públicos

Nuria Enguita diz estar a repensar o espaço museológico para que seja sempre “vivo e habitado” por públicos mais ativos.

A historiadora e curadora espanhola entrou em funções há cerca de dois meses e está a preparar as futuras programações, a começar pela celebração de um ano, em outubro, do museu que veio tomar o lugar do antigo Museu Coleção Berardo, em Lisboa.

“Os museus têm de habitar-se, de estar vivos e fazer parte da vida, e os países do Sul permitem isso”, disse a historiadora de 57 anos numa entrevista à agência Lusa a propósito do seu projeto para o espaço museológico que renovou a sua identidade em outubro de 2023, após o fim do acordo entre o Estado português e o colecionador José Berardo.

Questionada pela Lusa sobre o perfil atual dos visitantes do museu e o público que pretende atrair para a programação futura, Nuria Enguita disse que a vertente da mediação foi uma das destacadas no projeto apresentado no ano passado ao júri do concurso internacional do CCB, para escolha de responsável pela direção.

“A mediação é um serviço público importante e temos de trabalhar para fazer com que o museu seja para todas as pessoas, incluindo as que pensam que não seja para elas”, sustentou a historiadora que anteriormente dirigiu o Instituo Valência de Arte Moderna (IVAM), em Espanha.

Numa fase em que continua a descobrir e a “escutar com atenção” toda a estrutura do MAC/CCB, a curadora sublinhou a necessidade de desenvolver programas para famílias, crianças, adolescentes, adultos, e relacionar-se com universidades e comunidades específicas.

“O museu já tinha os seus programas, mas é preciso repensá-los e criar uma nova agenda, uma nova etapa para a ativação dos espaços e das coleções”, apontou, acrescentando que espera receber “um público mais participativo e menos passivo”.

Considera que o “grande desafio de todos os museus atualmente” é chegar a públicos como os adolescentes e outros grupos que “acham que o museu não fala para eles”.

“Nos anos 1970 houve uma grande abertura, uma saída da História da arte para a vida e o mundo. Agora temos de unir as histórias do mundo com a arte e entender que a sociedade também muda com os museus. É um trabalho muito a longo prazo, mas a base do CCB é muito boa. É uma transformação lenta, mas é fundamental e acredito que se pode fazer”, declarou a diretora, formada em História e Teoria da Arte pela Universidade Autónoma de Madrid, em 1990.

Recém-chegada a uma capital que já lhe era familiar pelo contacto com artistas e agentes culturais portugueses, nomeadamente em trabalhos colaborativos com os museus de Serralves, no Porto, e da Gulbenkian, em Lisboa, Nuria Enguita está focada em “pensar num programa na sua totalidade”, em ligação a um centro cultural que tem outras disciplinas”, nomeadamente a arquitetura e as artes de palco.

“Cada museu é único e localiza-se num lugar e num momento e há que trabalhar para esse espaço”, sublinhou a responsável que ainda criou a programação do IVAM anunciada para este ano, que inclui a exposição “O poder com que saltamos juntas. Mulheres artistas em Espanha e Portugal entre a ditadura e a democracia”, em colaboração com a Fundação Calouste Gulbenkian.

Sobre o perfil do público que pretende atrair para o MAC/CCB, não tem dúvidas de que é “um museu de arte moderna e contemporânea fundamental para toda a gente que visita Lisboa e que se interessa por cultura”.

“O CCB está localizado numa cidade com grandes infraestruturas culturais e interessantíssima na sua vida cultural e social, e que está a mudar”, observou à Lusa, apontado que as exposições temporárias que irá apresentar vão ter “um olhar a partir da capital”.

“Para mim não há centros e periferias: cada lugar pode estabelecer um diálogo com o mundo e nele temos de trabalhar com artistas daqui e de fora, sempre numa posição localizada, num mundo global, trabalhando o território e os contextos mais próximos”, disse a historiadora que, entre 2008 e 2015, organizou exposições em instituições espanholas e portuguesas como curadora independente.

Sobre os temas e artistas aos quais irá dar destaque em futuras exposições, a diretora artística recordou que a sua trajetória é marcada pela diversidade e por ter dado visibilidade a artistas que não a tinham, nomeadamente nos anos 1990, e foram depois reconhecidos.

Quanto ao orçamento para o museu no próximo ano, “ainda está a ser elaborado”, e sobre os dois milhões de euros anunciados pelo anterior ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, para aquisições de novas obras, a diretora artística disse que “há dinheiro disponível para aquisições que façam crescer a coleção” do MAC/CCB, mas escusou-se a avançar mais, nesta altura.

Inaugurado em 27 de outubro de 2023, o MAC/CCB reúne a Coleção Berardo – à quarda do CCB por decisão judicial, no âmbito de um processo da banca contra o colecionador José Berardo – acervo da Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE), a Coleção Ellipse, adquirida pelo Estado, e a Coleção Teixeira de Freitas, deixada em depósito pelo colecionador.

Museus devem ser lugares para pensar de forma crítica

“Há que encontrar um programa para o museu, mais do que de uma identidade”, declarou Nuria Enguita sobre o projeto que apresentou ao CCB, e que conquistou o júri do concurso internacional lançado em 2023.

O seu conhecimento da arte portuguesa, experiência curatorial e noutras instituições culturais – como o Instituo Valência de Arte Moderna (IVAM) e o Centro de Arte Bombas Gens, ambos em Valência, Espanha — pesaram na opção final do júri, que avaliou 39 candidatos, a maioria estrangeiros.

Questionada pela Lusa sobre o rumo que pretende dar ao MAC/CCB, onde iniciou funções em maio, a diretora artística sublinhou a importância de criar um programa aberto a trabalhar com a atualidade, e as questões dos artistas de várias gerações.

“A arte e a cultura formam parte do momento histórico e social, e como tal as urgências do presente”, segundo a responsável, uma preocupação que acompanhou toda a sua trajetória profissional.

Nuria Enguita demitiu-se do IVAM na sequência de uma denúncia do Governo da região de Valência, através do ministério regional da Cultura, dirigido por Vicente Barrera, do partido de extrema-direita Vox, por alegadas irregularidades numa doação, com outras 25 pessoas, à Fundação Todolí Citrus.

Sobre o caso, cuja denúncia acabou por ser arquivada, a nova diretora do MAC/CCB disse: “As condições políticas estavam a ter um impacto na cultura, e começavam a ter um impacto no meu trabalho. Nunca pensei que fizessem o que fizeram. No IVAM não podia trabalhar com autonomia”.

“Eu preciso de estar num sítio onde há confiança. Foi uma decisão muito importante, e tomei-a. Já não fazia sentido ficar [no IVAM]”, disse a curadora de 57 anos, formada em História e Teoria da Arte pela Universidade Autónoma de Madrid, em 1990.

A historiadora – que entre 1998 e 2008 foi diretora da Fundação Antoni Tàpies, em Barcelona — sublinhou que “os museus são atualmente lugares que permitem um pensamento crítico, e uma aproximação ao que se passa em seu redor, estão entre a universidade, na rua, nos ativismos”.

Para Nuria Enguita, “o discurso que a extrema-direita promove atualmente é o da hegemonia, e os artistas estão cada vez mais a confrontar esse discurso porque o campo da arte é muito mais aberto à diversidade e à complexidade”.

“Neste momento voltar a uma hegemonia é muito difícil e complicado, e há que confrontá-lo. Não podemos voltar atrás, como não podemos perder os direitos que já conquistámos. Há que trabalhar e entender, e não há uma solução única para as coisas”, defende.

Para a curadora, “há latências no passado que têm de sair, vir ao de cima, e cada vez mais os artistas querem contar as suas histórias, à sua maneira”.

As artes “sempre responderam às necessidades da vida e da Humanidade, e inclusivamente as artes abstratas”, recordou a diretora, apontando que o mundo atual está “muito mais polarizado”.

“Mas há muitas histórias para contar. Porque não é uma coisa ou outra, há mais matizes. Os museus devem ser lugares para pensar, de forma mais crítica e abrangente. A cultura deve ajudar a entender um mundo muito complexo”, defende a nova diretora do MAC/CCB.

Apesar de ter implicado deixar a família em Espanha, Nuria Enguita diz sentir-se satisfeita por estar em Portugal, “um país próximo”, e que já conhece bem, onde tem amigos há mais de trinta anos.

“Em Portugal há uma consciência da importância da cultura. Estou muito contente por estar neste país”, declarou, na entrevista à Lusa.