O Governo de Luís Montenegro garante que não pretende alterar os critérios, no continente, para o acesso às creches. Em declarações ao Observador, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social assume que “não há qualquer intenção da parte do Governo em alterar os critérios estabelecidos no acesso às creches”

O gabinete de Rosário da Palma Ramalho diz mesmo que “alterámos o critério da abrangência territorial para conseguir ter mais vagas e não vamos mudar mais critérios”.

Em junho, o Ministério fez sair uma portaria para que o acesso à rede privada ou social possa ocorrer por falta de vagas na freguesia de residência ou de local de trabalho dos pais (ou representantes legais) ou freguesias limítrofes, quando, antes, era o concelho que importava (e não se estendia aos concelhos contíguos).

Na portaria de 7 de junho determina-se que a gratuitidade aplica-se a crianças nascidas a partir de 1 de setembro de 2021 que “frequentem as creches identificadas no artigo 3.º [rede privada e das instituições particulares de solidariedade social], localizadas nas freguesias de residência, do local de trabalho dos pais ou de quem exerce as responsabilidades parentais, ou nas respetivas freguesias limítrofes, sempre que se verifique a falta de vagas abrangidas pela gratuitidade na rede social e solidária com acordo de cooperação com o ISS, I.P., e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”.

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O Governo da República afasta-se, assim, da polémica nos Açores que aprovou uma recomendação no Parlamento, noticiada  pelo Expresso, para que os filhos de pais desempregados passem a ser discriminados no acesso a creches gratuitas no arquipélago, e desde então as reações têm vindo a multiplicar-se com a oposição a levantar dúvidas de constitucionalidade e o Governo a defender-se ao dizer que quer “defender os direitos da criança”.

O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, ao mesmo tempo que fala das alterações promovidas no continente, recusa comentar as mudanças nos Açores, dizendo que “nada tem a comentar sobre uma decisão da competência da Assembleia Regional, conforme Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei n.º 39/80, de 5 de agosto)”.

O Projeto de Resolução do Chega foi aprovado com o apoio de PSD/CDS/PPM, abstenção da Iniciativa Liberal e o voto contra do Partido Socialista, do PAN e do Bloco de Esquerda, que defendeu que a alteração tem de ser enviada para o Tribunal Constitucional.

Bloco de Esquerda pede revisão da medida pelo Constitucional

Em comunicado, citado pelo Açoriano Oriental, o BE/Açores afirmou que é “flagrante” a “inconstitucionalidade” do projeto por “violação do princípio da igualdade”. O partido disse ainda que o Governo tem “responsabilidade pela falta de vagas” para todas as crianças, uma vez que o executivo de José Manuel Bolieiro não construiu “uma única creche em quatro anos”.

De seguida, Mariana Mortágua, coordenadora do Bloco de Esquerda, reiterou as dúvidas de violação do princípio de igualdade e argumentou que a alteração é um “bom exemplo” da forma como a direita governa: “A direita acha que as pessoas mais pobres, os filhos das pessoas mais pobres, não têm os mesmos direitos que os filhos das outras pessoas”, disse, lembrando que “é das crianças que estamos a falar”.

Açores. Parlamento regional aprova resolução que discrimina filhos de desempregados no acesso a creches gratuitas

As dúvidas levantadas pelo Bloco de Esquerda são corroboradas por constitucionalistas. Em declarações à Renascença, Bacelar Gouveia considera tratar-se de “uma desigualdade em função de um critério que não é relevante”. “Pode-se considerar uma discriminação em função das pessoas trabalharem ou não quererem trabalhar. As pessoas podem não querer trabalhar”, salientou, acrescentando que “as pessoas não são obrigadas a trabalhar, isso é uma intromissão na vida privada”.

A pessoa pode ser rica, pode estar no café o dia todo, porque é que o seu filho não há de ir a creche como os outros?”, questionou o constitucionalista, que lembrou que se a Assembleia Regional dos Açores avançar para um decreto de lei com a alteração, Marcelo Rebelo de Sousa tem o poder de vetar ou enviar para o Tribunal Constitucional para esclarecer potenciais dúvidas.

Por sua vez, Arnaldo Ourique, especialista em Direito Constitucional, mostrou, também, em declarações ao Diário dos Açores, ter dúvidas acerca da legalidade da resolução, porque “os princípios da universalidade e da igualdade impedem-no”. No entanto, relembrou que a “Constituição prevê uma igualdade igual [sic] para situações iguais e a desigualdade para situações desiguais”. Quer isto dizer que “é possível fazer discriminações positivas em função duma necessidade adequada e proporcional”. “São muitos os exemplos de leis que permitem esses desvios: uma senhora com o filho ao colo tem direito de preferência no atendimento; uma família com menores rendimentos paga menos impostos ou paga menos pelo filho numa creche”, exemplificou.

Ainda que sem levantar dúvidas quanto à constitucionalidade, também o PS/Açores não poupou críticas a um projeto que acredita só ter sido aprovado “porque o Governo depende do Chega para a aprovação do futuro Orçamento Regional”. À Rádio Observador, Andreia Cardoso, vice-presidente do grupo parlamentar dos socialistas na Assembleia Regional, classificou a votação como um “dia negro no Parlamento dos Açores, que envergonha todos”, acrescentando que a alteração “relega para segundo plano o superior interesse das crianças e a própria convenção dos direitos das crianças, bem como a própria Constituições portuguesa”, colocando “as famílias umas contra as outras”.

Creches. PS/Açores não poupa críticas a resolução que discrimina filhos de pais desempregados

João Costa, ex-ministro da Educação e recém-eleito líder da Agência Europeia para o Ensino Especial e Educação Inclusiva, juntou-se às vozes contra a iniciativa, que descreveu como “terrível”. Ouvido pela Rádio Observador, o antigo governante alertou para a importância de uma educação pré-escolar de qualidade como “um dos principais preditores de sucesso escolar logo nos primeiros anos de aprendizagem”. “Se por um lado isso é um dos principais preditores de sucesso, também sabemos que a situação de carência socio-económica é um dos principais fatores de insucesso”, continuou, considerando a iniciativa “lamentável” porque retira “essa oferta que é estruturante para as crianças das famílias mais carenciadas”.

[Ouça aqui as declarações de João Costa (a partir do minuto 4) sobre as creches gratuitas:]

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Susana Peralta, economista e que promoveu o estudo Portugal, Balanço Social (em coautoria com Bruno P. Carvalho e Miguel Fonseca), escreveu no Público que, “havendo escassez de lugares em creches, é nas crianças desfavorecidas que eles fazem mais falta”, garantindo que “o impacto da educação nos primeiros anos é concentrado nas crianças de famílias em situação de fragilidade socioeconómica, porque as outras têm com maior probabilidade em casa os estímulos que desenvolvem competências”.  Os estudos mostram que os anos mais fundamentais na formação de uma criança são os primeiros, até aos cinco anos, reforça Luís Aguiar-Conraria, economista, em declarações no programa Fora do Baralho, da Rádio Observador.

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“E é nesta altura da vida que o combate à pobreza tem mais eficácia”, e, por isso, critica o facto de se “pôr no fim da fila, no acesso às creches, as crianças das famílias mais pobres, que muitas vezes também são as mais desestruturadas”. Para o economista “a prioridade tem de ser a oposta”.

E recorda que no programa eleitoral a AD chegou a prometer passar as creches da tutela do Ministério do Trabalho para o da Educação. E que acabou plasmado no programa do Governo onde se admite “integrar a faixa etária dos 0 aos 3 anos no sistema educativo tutelado pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação”. O que Luís Aguiar-Conraria considera que vai no sentido de “olhar para as creches como o início do percurso escolar”.

Segundo o estudo, citado por Susana Peralta, em 2022, apenas 26% das crianças de famílias que não são pobres frequentavam creches a tempo inteiro, percentagem que descia para 18% nas famílias pobres. E acrescenta outro dado: em 2022, os Açores tinha a maior taxa de pobreza, 26%, contra 17% para o conjunto do país. Sendo também a região “com maior taxa de pobreza entre os desempregados e onde ser desempregado mais aumenta a probabilidade de ser pobre. Enquanto no conjunto do país a situação de desemprego aumenta a probabilidade de ser pobre em 37 pontos percentuais, nos Açores aumenta-a em 46 pontos percentuais”, escreve no Público, recordando também que para as crianças açorianas, em muitos casos, ir à creche significa também dar uma refeição completa nos dias de frequência.

Bolieiro defende-se: “Não aceito que se transforme um bem num mal”

O Governo dos Açores tem vindo a rejeitar as críticas e, segundo a RTP, José Manuel Bolieiro não receia que alteração seja inconstitucional: “Não aceito que se transforme um bem num mal (…) Estamos a defender os direitos da criança”, disse. “Acho que estão a fazer uma tempestade porque o que está visto e proposto é uma solução para um problema e não para criar dificuldade de discriminação negativa a quem quer que seja”, acrescentou o presidente do governo regional açoriano.

Com aparente indignação, em declarações aos jornalistas transmitidas pela estação televisiva pública, Bolieiro deixou no ar duas questões: “Se os que vivem de pobreza e têm subvenção de apoio público para a sua sobrevivência têm filhos, podem tomar conta dos filhos, qual é a dificuldade? […] Querem tornar pobres aqueles que trabalham e garantem o seu rendimento e que têm de se desempregar para tomar conta do filho?”.

Anteriormente, em declarações ao Expresso antes de a polémica se adensar, uma fonte do executivo dos Açores já tinha mencionado que não era “naturalmente entendimento do Governo deixar crianças com vulnerabilidade para trás” e que a medida pretende em “projeto piloto” testar os critérios e perceber se “efetivamente são justos”. Será, para isso, analisada uma amostra da lista de espera, acrescentou ao Expresso fonte governamental. Susana Peralta considera que se é a justiça que se vai testar, então não é preciso porque “já sabemos que é injusta”, por isso considera que essa declaração “é uma mentira que inventaram para justificar, com umas vestes modernas, um favorzinho manhoso e criminoso que fizeram ao Chega e à agenda do Chega, que é persecutória relativamente às pessoas de baixo rendimento”. E declara à Rádio Observador: “Não tem ponta por onde se lhe pegue”.

O projeto de resolução partiu do Chega que, nas palavras da deputada regional Olivéria Santos, justifica que “não está em causa o acesso às creches”, mas antes “uma prioridade nos critérios de admissão”, que, citada no portal do Chega dos Açores, acrescenta que perante a “escassez de vagas nas creches, aliada à necessidade premente de promover a equidade no acesso a estes serviços, torna-se imperativo proceder a uma revisão da legislação”. Considera que “não estamos a tirar o direito a ninguém, mas as crianças cujos pais não trabalham não devem ter prioridade sobre crianças em que os pais trabalham”.

Já o PSD Açores, que não quis gravar declarações para a Rádio Observador, remeteu a questão para o Decreto Regulamentar Regional n.º17/2001/A de 29 de novembro que indica que a “valência de creche destina-se a acolher as crianças pertencentes a famílias em que ambos os progenitores, o progenitor que tem a criança à sua guarda ou aquele ou aqueles a quem a criança foi confiada, trabalham ou famílias que, por razões sociais devidamente fundamentadas, não possam assegurar em permanência a sua assistência, entre a idade correspondente ao termo da licença por maternidade, paternidade ou adoção e o ingresso no jardim-de-infância”.