Enviado especial do Observador em Paris, França

À primeira vista, a imagem que acompanha este texto pode parecer desfocada ou mesmo um borrão depois de rebentar. Não, não perca de vista esta imagem porque é “a” imagem destes Jogos de Paris-2024. Os EUA tiveram de esperar duas décadas para voltarem a celebrar um rei da velocidade entre o aparecimento de Usain Bolt e a falta de opções no próprio país. Faltava um herói, uma referência, alguém que pudesse fazer um desafio de peito aberto ao estatuto de homem mais rápido do mundo (isso do recorde não iremos nos próximos longos anos) sem acelerar apenas nas desculpas quando as coisas não corriam bem. Ele chegou.

Ao contrário do que aconteceu na véspera com a final feminina dos 100 metros, a masculina teve honras de pompa e circunstância como uma das provas rainhas da competição (porquê, não se sabe). Logo à entrada do Stade de France, as dezenas de voluntários foram distribuindo pulseiras a todos os adeptos que entravam no recinto. “O que é isto?”, perguntava-se. “Faz luz, depois de noite já vão perceber”, respondiam os voluntários. Nem eles sabiam ao certo o que seria a não ser que dava luz. Dava mesmo: minutos antes da decisão todas as luzes foram apagadas e as tais pulseiras brancas criaram o tal efeito pretendido qual concerto de Coldplay na última digressão que fizeram. Chegava o momento da verdade sem existir um favorito óbvio.

Noah Lyles era o nome mais falado – o que não quer dizer com isso que fosse o mais favorito. Aos 27 anos, o atleta norte-americano que se afirmou em definitivo nos últimos Mundiais com dupla vitória nos 100 e 200 metros era um pouco a versão masculina de Sha’Carri Richardson, a preferida na sondagem das palmas no Stade de France. Os norte-americanos têm muito o costume que, na antecâmara dos Jogos, elegerem os seus ícones e projetá-los como vencedores a que mais vale dar já a medalha de ouro. Com Lolo Jones, a rapariga conhecida por razões extra atletismo que trabalhou com uma equipa de 40 pessoas das mais diferentes áreas para brilhar em Londres-2012 mas falhou o pódio, não resultou. Com Simone Biles, era impossível correr mal. Agora, com Noah Lyles, podia ou não funcionar. Facto: ele era a cara e a capa da revista Time.

No entanto, aquilo que as disputadas meias-finais mostraram era que seria uma corrida em aberto, a ponto de o campeão olímpico ter de ficar sentado naquele incómodo banco das repescagens à espera de perceber se entrava ou não nos oito finalistas com um tempo de 9,92. Antes, Lyles queria mostrar-se. À concorrência, ao mundo. Colocou a mão na cara como se fosse um guerreiro quando foi apresentado, mostrou as unhas que estão pintadas com a bandeiras norte-americana, mostrou enorme confiança de penteado especial feito em Paris. O atleta está lá, a parte de figura também, a certeza de que ganharia a final é que nem por isso e foi o jamaicano Oblique Seville a fazer a melhor marca pessoal do ano a 9,81 à frente do norte-americano.

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Na decisão, última prova para medalha da noite e mais tarde do que a final feminina da véspera (21h50 para 21h20), havia novo duelo entre velocistas que quando estão nas meias gostam de cortar a meta a olhar para o adversário para tentar entrar na sua cabeça. Não havia apenas Oblique ao lado de Noah Lyles, com o seus compatriotas Kenneth Bednarek e Fred Kerley juntos nas pistas mais à esquerda, Kishane Thompson a aumentar o contingente jamaicano que é quase obrigatório por regra numa final, Marcell Jacobs a correr literalmente por fora na 9 e duas setas africanas, Akani Simbine e Letsile Tebogo, apontadas à surpresa. Só ninguém percebeu os minutos de espera entre a chamada e o sinal para o início da prova, sobretudo vários dos atletas que começavam a mudar a feição confiante e de “monstro”. Noah Lyles era um deles.

Ao ouvir-se a partida, todos no Stade de France saltaram como uma mola. Em menos de dez segundos essa coisa chamada cadeira passa a ser um acessório e ninguém pode ficar sentado, calado ou distraído. Afinal, são menos de dez segundos com Lyles a ter o problema de fazer um arranque menos conseguido. Estava a cair para Thompson aos 30 metros, estava a cair para Thompson aos 60 metros, ia cair para Thompson. Sem polémicas ou teorias da conspiração, o instinto inicial de todas as câmaras foi apontar para Thompson mas o ecrã do recinto confirmava apenas que Oblique não tinha ganho e ficara em último.

Tudo em photo finish. Se antes da corrida e ao longo de quatro anos os atletas poderiam ter interferência na capacidade de ficarem mais próximos do sucesso, ali era uma questão de esperar mesmo que cada segundo fosse demorando uma eternidade. Uma eternidade, duas eternidades, algumas eternidades e uma decisão: as câmaras passavam a apontar para Lyles, o quadro registava um “empate técnico” a 9,79 com Thompson mas com vantagem para o norte-americano e com a certeza de que Fred Kerley tinha ganho o bronze com 9,81 (a melhor marca pessoal do ano) à frente do sul-africano Akani Simbine (9,82) e do antigo campeão olímpico Marcell Jacobs que não foi além do quinto lugar (9,85). A decisão estava tomada, a explicação ao pormenor foi dada depois com a publicação dos dois registos e a diferença de cinco milésimos (9,784 e 9,789).

“Várias corridas que faço são pré-visualizadas por mim para que posso superar isso em cada passo que dou e se aprender alguma coisa nova no treino acrescento a essa minha visualização”, explicara Noah Lyles antes de Paris. Depois de Tóquio, o norte-americano, que não foi além da medalha de bronze nos 200 metros, veio confidenciar que o facto de ter corrido num estádio vazio e sem público lhe tinha sugado toda a energia. É um facto: antes do tiro de partida, foi ele que “chamou” as pessoas à corrida, ouvindo aquele apoio de quem era o favorito entre as dezenas e dezenas de nacionalidades distribuídas pelo Stade de France. Não chegou para evitar um arranque menos conseguido mas chegou e sobrou para fazer a festa no final da prova.

“Espero que tenham gostado do Noah porque ainda está muito para chegar!”, atirou quando passou pela zona de entrevistas rápidas da BBC. “O meu treinador já me tinha dito que a diferença entre o primeiro e o segundo ia ser mesmo apertada, não consigo acreditar que foi mesmo desta forma. Não podia pedir um momento maior do que este. Tive de aceitar todas as rondas como elas são mas depois da primeira ronda vim com agressividade e corri a 83. O meu terapeuta desportivo já me tinha dito que precisava de uma soltar”, comentou na mesma flash interview. “No final olhei, cumprimentei o Kishane, disse-lhe que esta ia para ele, depois vi que ganhei e pensei ‘Sou incrível’. Quem é que eu sou? I’m the man“, respondeu no Eurosport.

Depois de Justin Gatlin em 2004, os EUA voltavam a ter um campeão olímpico dos 100 metros e logo com a margem mais baixa desde 1980, numa corrida decidida a 10,25 entre Allan Wells e Silvio Leonard. Tão ou mais relevante do que isso, Noah Lyles mostrou-se e explicou o porquê de ter sido a capa da Time na edição que antecedeu os Jogos de Paris. Ainda assim, é pelo photo finish que fez este domingo manchetes um pouco por todo o mundo num estilo sempre cheio de confiança que já aponta para a final dos 200 metros.