Era uma vez uma “grande coligação”.
Desde que a Segunda Guerra Mundial terminou, em 1945, tem sido esse o termo mais recorrente na realidade austríaca. A “grande coligação” tem, até aos dias de hoje, consistido no esforço entre os socialistas austríacos (SPÖ) e os conservadores (ÖVP) para afastar os partidos de ambos os extremos de chegarem ao poder. Para tal, têm chegado a acordos de governo na maior parte das vezes. Houve algumas exceções, como o controverso executivo do conservador Wolfgang Schüssel, que preferiu chamar a direita populista e anti-imigração da FPÖ para o Governo, em vez dos habituais parceiros de coligação.
Porém, o que ainda não teve exceção desde os tempos em que o país deixou de ser liderado por Adolf Hitler foi o Presidente austríaco, formalmente a figura mais importante no sistema semi-presidencialista daquele país, contar com o apoio ora dos socialistas, ora dos conservadores. Isto está prestes a mudar.
A Áustria prepara-se para definitivamente virar essa página nas eleições presidenciais deste domingo. Na primeira volta, a 24 de abril, os candidatos apoiados pelo ÖVP e pelo SPÖ não chegaram sequer aos 23% juntos. Neste domingo, 22 de maio, a segunda volta será disputada pelo candidato d’Os Verdes, Alexander Van Der Bellen (21,3% na primeira volta), e pelo escolhido do FPÖ, Norbert Höfer (35,1% na primeira volta). Este último surge em todas as sondagens como o favorito para se tornar no próximo Presidente da Áustria.
O engenheiro de pistola que quer ser Presidente
Höfer, engenheiro aeronáutico de formação mas político já desde os anos 90, é uma das principais caras do recente sucesso do FPÖ, o partido de direita populista e anti-imigração da Áustria. Desde 2013, ocupa o lugar de terceira figura mais importante no parlamento austríaco — posição que lhe deu notoriedade, a qual usou para expor as suas ideias. Durante a campanha, Höfer, cuja postura pública é marcada pelo constante sorriso e pela aparência cuidada, disse que era “decididamente contrário ao multiculturalismo forçado, à globalização e à imigração em massa”.
Pai de quatro filhos, Höfer vive um segundo casamento com uma mulher que trabalha na assistência a idosos. Um acidente de parapente em 2003 provocou-lhe uma lesão irreversível numa perna, o que o leva a usar uma bengala para andar. Outro facto conhecido da sua vida quotidiana é que tem por norma levar sempre consigo uma pistola Glock, para defesa pessoal.
Como seria de esperar, um dos temas em destaque nesta campanha tem sido a crise dos refugiados. No pico da crise dos refugiados do verão de 2015, a Áustria abriu as suas fronteiras aos refugiados que ali davam os últimos “passos” rumo à Alemanha. No entanto, a situação ganhou proporções difíceis de gerir para aquele país de apenas 9 milhões de pessoas. O então chanceler austríaco, o socialista Werner Faymann, acabou por dizer a Angela Merkel que a Áustria não era a “sala de espera” da Alemanha e fechou as fronteiras, suspendendo Schengen.
Enquanto isso, o FPÖ, abertamente contrário à entrada de refugiados no país, tirava proveitos políticos da situação. Logo no final de setembro, duplicou a votação nas regionais da Alta Áustria, chegando aos 30,5% e subindo ao segundo lugar. E, como já escrevemos, venceu a primeira volta das presidenciais em abril, chegando a ter mais 10% do que as sondagens lhe apontavam. O choque foi suficiente para, já em maio, o chanceler austríaco ter apresentado a demissão, dando como razão a subida da direita populista. O seu sucessor foi anunciado a 17 de maio: Christian Kern, diretor das infraestruturas ferroviárias austríacas e um homem estranho ao mundo político.
“Amor, liberdade, amor à pátria!”
Ainda assim, a crise dos refugiados está longe de ser a única razão da subida de popularidade deste partido, que, à semelhança do que acontece com a Frente Nacional em França, vai buscar grande parte dos seus votos às classes trabalhadoras e ao eleitorado sem formação académica. Bem antes da atual crise dos refugiados, nas eleições legislativas de 1999, o partido anti-imigração já tinha ficado em segundo lugar com 27% dos votos — e acabou por integrar o governo do conservador Schüssel, que ficou marcado por sanções da União Europeia. E nas últimas legislativas, de 2013, conseguiu voltar aos resultados acima de 20%.
Além da crise dos refugiados, o sucesso do FPÖ também se alicerça no abrandamento da economia austríaca, nos números do desemprego (pese embora a recente baixa de 10,9% em janeiro para 9,1% em abril) e sobretudo no cansaço da opinião pública perante o sistema bipartidário, responsável por uma cultura “clientelista” no setor público.
A tudo isto, Hofer responde com o slogan “Exibe a bandeira! Amor, liberdade, amor à pátria”. O tom é nacionalista, mas também positivo — em vez de apelar à expulsão de imigrantes ou ao fecho das fronteiras, apela a uma espécie de união nacional entre austríacos. Mas por detrás de tudo isto, há quem veja um “lobo vestido com pele de cordeiro”.
Inevitáveis são os fantasmas do passado austríaco sobre Hitler. Hofer faz parte de um burschenschaft, nome dado a grupos masculinos que enaltecem o povo germânico como um todo, colocando os austríacos dentro dessa categoria. E recentemente, a propósito da data que marca o fim da Segunda Guerra Mundial, o candidato presidencial da direita populista disse que não havia “razões para comemorar”. A declaração causou alguma polémica, e Hofer tentou mais tarde emendar o que disse acrescentando que “a guerra em si nunca é um motivo de alegria, porque na guerra há inúmeras vítimas”.
“Grande coligação” afasta-se das eleições e espera para ver no que elas dão
Do outro lado da barricada está Alexander Van der Bellen, 72 anos, em muitos parâmetros nos antípodas de Hofer. Menos eloquente e consideravelmente mais velho, Van der Bellen recolhe apoio sobretudo junto do eleitorado urbano e com educação superior. O seu slogan é uma resposta direta ao seu adversário (“Quem ama a pátria não a divide”) e, segundo o Financial Times, disse que estas eleições vão marcar a escolha entre um Presidente com “um estilo cooperativo ou autoritário”. Noutra ocasião, prometeu agir “dentro do quadro da Constituição” para que fosse evitado um Governo liderado pelo FPÖ.
Hofer acusa o seu adversário de ser um “ditador fascista e verde”.
Ao contrário do que se podia esperar inicialmente, Van der Bellen não conseguiu o apoio dos dois partidos da agora moribunda “grande coligação” — estes preferiram resguardar-se, o que pode significar que não fecham a porta a um possível entendimento com a direita populista nas próximas eleições legislativas, que estão marcadas para 2018 mas que, perante o cenário pouco previsível da política austríaca, podem chegar antes. A confirmar-se o cenário de eleições antecipadas, o FPÖ agradece: a última sondagem da Gallup coloca o partido de direita populista em primeiro com 34% dos votos, seguindo-se os conservadores com 22%, os socialistas com 21% e os ecologistas com 13%.
Afinal, é para essa altura que muitos olhos começam a olhar. O sistema político austríaco, baseado no modelo semipresidencialista, confere pouca importância ao Presidente, quando comparado com o chanceler e o seu executivo. Mas até nisso Hofer já deixou claro que, caso vença este domingo, não quer ser um Presidente típico. Quando questionado sobre os poderes do Presidente durante esta campanha, respondeu: “As pessoas ficariam impressionadas com a extensão [dos poderes do Presidente]”.