Baile. Dito assim, sem mais nem menos, a palavra é simpática e implica tão-só dança. De salão, de rua, o que for. Se acrescentarmos o prefixo g’anda e esticarmos uns quantos aaaaaaaa, aí já se pia fininho. O g’anda baaaaaaaile está associado a um desempenho superior para mal de outrem, seja pessoa individual ou coletiva. No futebol, o g’anda baaaaaaaile é aquele jogo em que uma equipa joga e marca, enquanto a outra nem se vê. Como o Argentina-Colômbia em 1993.

Porquê esse exemplo? Porque esta terça-feira à noite, habemus um Argentina-Colômbia (23h30 na SportTV1) para a qualificação do Mundial-2018. Onde? Em San Juan, a cidade do hóquei em patins por excelência, situada a 650 metros acima do nível do mar. Os voos para lá costumam ser agitados. Os poços de ar abundam e os aviões tremem por todo o lado, como gelatina. Ainda ontem, toma lá morangos. Gelatina de morango? Antes fosse. O voo da seleção argentina de Buenos Aires para San Juan é mais turbulento que um carrossel na feira. Vai daí, alguns jogadores sentem-se mal e precisam de assistência médica em pleno voo. Um deles é Lionel Messi, célebre pelos golos em catadupa no Barcelona, bem como pelos jatos de vómitos por esses relvados espanhóis fora. Muy bien (ou muito mal), Messi está enjoado no avião e vomita abundantemente. Quando se aterra em San Juan, o capitão da Argentina recupera e da sua boca só passam a sair palavras. Monocórdicas – que nós sabemos muy bien como é o rapaz.

Posto isto, é tempo de aquecer para o clássico desta noite. Um Argentina-Colômbia desperta sempre uma atenção fora do normal por culpa do aglomerado de estrelas por metro quadrado. De um lado, Messi. Do outro, James. Isto só para abrir o apetite. Depois ainda há Agüero, Bacca, Di María, Falcao, Higuaín, Cuadrado e por aí fora. É espetáculo assegurado. Com picante. Sim, picante. A Argentina não ganha há quatro jogos seguidos (empates com Venezuela mais Peru, derrotas com Paraguai mais Brasil) e está proibida de falhar sob pena de se deixar atrasar ainda mais na corrida pelo apuramento direto.

Ora aí está, bem visto. Fala-se de apuramento direto e vem à baila aquela g’anda baaaaaaaile da Colômbia em Buenos Aires. O dia está gravado na memória de quem gosta de bola: 5 Setembro 1993. O Monumental está cheio e a Argentina tem de ganhar para chegar ao Mundial-94. A Colômbia, mais tranquila, joga para o empate. Na antevéspera do jogo, o último da fase de qualificação, ainda dividida em dois grupos de quatro seleções, Diego Maradona tem a famosa tirada do “Argentina arriba, Colômbia abajo”.

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Como quem diz, era só o que faltava a Argentina perder pontos para uma seleção sem história. As equipas entram em campo e a euforia instala-se no estádio do River Plate. Aos dois minutos, os adeptos argentinos já entoam olés à troca de bola na defesa. Vale lembrar que esta Argentina de Alfio Basile é a atual campeã continental, com o 2-1 ao México, na final da Copa América, em Julho 2003. Já agora, outro detalhe impressionante: a Argentina nunca perde um jogo de eliminatória mundialista em casa e está invicto em casa há coisa de seis anos.

Aos 41 minutos, Valderrama recebe a bola no meio de três argentinos, de costas para a baliza adversária, ajeita-se como pode e consegue meter a bola para a entrada de Rincón. Ao seu primeiro toque, o lateral Altamirano é ultrapassado sem remissão. Ao segundo, o guarda-redes Goycoechea é driblado com classe. Ao terceiro, é o 1-0. Com categoria e justiça, a Colômbia coloca-se em vantagem e silencia o Monumental. Nas bancadas, a câmara de televisão apanha Maradona a roer as unhas, na companhia da mulher Claudia Villafane. A segunda parte é um filme de terror. Para a Argentina, claro. A Colômbia diverte-se como nunca. É um fartote, um monólogo sem igual. Que o diga Asprilla, um verdadeiro quebra-cabeças.

Veja lá isto: o avançado marca o 2-0 aos 50 minutos, depois de passar facilmente por Borelli na esquerda, inicia a jogada do 3-0 de Rincón com um “turbo boost” em que limpa três adversários num abrir e fechar de olhos, e ainda assina o 4-0, com um vistoso chapéu a Goycoechea à entrada da área. Que galopada, irra. A Argentina, já com Acosta (esse mesmo) em campo no lugar de Redondo, está de gatas. Maradona, equipado à Argentina 1986, patrocinada pela Le Coq Sportif (a Argentina de 1993 é Adidas), tem a cara entre as mãos, cobre-se de vergonha.

A pedra de toque chega aos 84 minutos. Valderrama liberta Asprilla, cujo cruzamento rasteiro apanha Valencia em corrida a antecipar-se a Goycoechea. Cinco a zero. G’anda baaaaaaaaaile. À mesma hora, o Paraguai só saca um ponto ao Peru em Assunção (2-2) e perde a oportunidade de ouro de se qualificar para o play-off com a Oceania, em vez da Argentina. Menos mal, o bicampeão sul-americano ainda tem um derradeiro teste para o Mundial-94. Entra então em cena Maradona e a Austrália é vergada ao peso da história (1-1 em Brisbane, 1-0 em Buenos Aires). No Mundial, o sonho americano da deslumbrante Colômbia acaba bem cedo, logo na primeira fase, e a Argentina vive o pesadelo com as equipas de Leste (2-0 da Bulgária, nos grupos, e 3-2 da Roménia, nos oitavos), na ressaca de outro controlo anti-doping a Maradona.

palermo

Argentina-Colômbia. Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça. Está mais para desgraça. Na perspetiva de Palermo, claro. Em plena Copa América-1999, o avançado argentina consegue falhar três penáltis vs. Colômbia. Como assim? Isso mesmo, é de ficar apalermado com tanta falta de pontaria. Ei-lo, ao vivo e a cores.

Está aí à porta o Argentina-Colômbia…
Ay, ay, ay. Queres mesmo começar por aí? Mas tu por acaso viste o penálti da Diana Ross no Mundial-94?

Vi, esse teve piada.
Pronto, eu falhei três penáltis mas ultrapassei esse facto.

Como?
Com a ajuda de amigos, familiares e Bianchi [treinador do Boca Juniors]

E esse houvesse um quarto penálti nesse jogo?
A verdade é que houve cinco, sabes? Eu falhei o primeiro, à barra [5 minutos]. Depois, eles marcaram pelo Córdoba [10’] e ainda falharam um outro pelo Ricard, para defesa do Burgos [47’]. Na parte final, falhei mais dois [76’ e 90’, defesa de Calero]. A Colômbia ganhou-nos 3-0 mas nós também nos qualificámos para os quartos-de-final. Aí, calhou-nos o Brasil e houve um penálti a nosso favor. Eu estava em campo mas quem marcou foi o Ayala. Que falhou, para defesa do Dida. E fomos para casa [1-2].

https://www.youtube.com/watch?v=RRxwOFnMUXc

Imagino a contestação dos adeptos nas ruas de Buenos Aires…
Sim, foi complicado gerir a situação mas são coisas que acontecem, sabes? Mesmo quando eu marcava golos e decidia super clássicos [com o River], eles vinham ter comigo e diziam-me ‘mas como é que falhaste aquele golo?’ Com o passar do tempos e dos golos, essa marcação deixou de existir. Consegui que me reconheçam. É essa a magia do futebol. Naquele cubículo que é o campo, podemos alterar a vida de tanta gente! Lá dentro, tudo é possível. Consegui tanta coisa impossível e inexplicável que acredito nessa magia.

Estás a falar do teu golo ao Peru [qualificação para o Mundial-2010]?
O meu golo ao Peru é só um exemplo. Nunca joguei com tanta chuva na minha vida. Aquilo mais parecia pólo aquático. De repente, o Peru empata 1-1 aos 89 minutos. Que desilusão. O Mundial-2010 cada vez mais longe e ainda nos faltava um jogo, no Uruguai! Até que há uma bola… É incrível mas verdade. Eu não fiz nada, estava ali parado, quando a bola me aparece à frente. Rematei com toda a força que tinha, a bola passou inacreditavelmente por aquela árvore de pernas, entre peruanos, argentinos e árbitro [risos contidos], e entrou. Foi o delírio. A minha vida é um filme, com um guião cheio de altos e baixos mas perfeito. O regresso após lesão com o River, o muro que me caiu em cima em Espanha, o golo no último minuto ao Peru, os dois golos em cinco minutos ao Real Madrid na Taça Intercontinental, o golo à Grécia no Mundial-2010. Sim, este guião encanta-me.

Não há um mas?
A minha melhor decisão foi ser futebolista. Não me imagino sem futebol. E sei que vou trepar as paredes [‘comiendo las paredes’] quando não for ao clube por uma semana ou um mês, quando o Boca jogar e não estiver por lá. Mas sim, às vezes gostaria de ser uma pessoa normal, que entra no autocarro, pica o bilhete e segue o seu caminho inadvertidamente.

Por falar em seguir o seu caminho, li que vais ao psicólogo.
Correcção: à psicóloga. Desde 2000. Ajuda-me a encarar os medos, as ansiedades, e ajuda-me em outros temas que não só o futebol.