Nico Rosberg 367 e Lewis Hamilton 355. À falta de um Grande Prémio (Abu Dhabi), os dois primeiros vêem-se a 12 pontos de distância. Se fosse como antigamente, digamos 1984, seria uma vantagem confortável, mas isto está on fire a partir do momento em que a FIA decide alargar o sistema de pontos para os dez primeiros classificados. Quer isso dizer o quê? Para chegar ao tri, Hamilton tem de ganhar e esperar pelo quarto lugar de Rosberg, curiosamente seu companheiro de equipa na Mercedes. Que o último GP coroe um campeão do mundo é sempre especial e até nem é caso único.

Ah-ha gotcha, daí a referência ao ano 1984 no parágrafo anterior. É o ano em que o GP Portugal domina as atenções na última decisão na Europa até 1997. É uma época particularmente especial para a McLaren, dominadora incontestável do circuito com Alain Prost e Niki Lauda a acumularem 12 vitórias em 16 provas. No Estoril, a dúvida: qual dos dois se sagra campeão mundial? À partida, o austríaco lidera com 66 pontos sobre o francês (62,5). Sessenta e dois e meio? É isso, o GP Monaco acaba a meio por determinação (polémica) de Jacky Ickx, sem consultar os responsáveis da pista, e os pilotos só fazem 1/3 dos pontos. Daí esse meio. Ou seja: Prost só poderia ser campeão se ganhasse e Lauda acabasse em terceiro. O campeão em título Nélson Piquet (5.º da geral) faz a 9.ª pole-position do ano, num Brabham. Ao seu lado, Prost. Na segunda linha da grelha, o miúdo prodígio Ayrton Senna (Toleman) e Rosberg (Williams). Então… e Lauda? Pasme-se: 11.º lugar.

O GP está marcado para 21 de Outubro. No arranque, Prost ultrapassa Piquet e caminho tranquilo para a vitória. Do GP e do Mundial. Então, e Lauda? O homem ziguezagueia com o talento que se lhe reconhece. Passa um, dois, três, quatro. Às tantas, já está em terceiro lugar, atrás de Nigel Mansell (Lotus). Tempo e resultado: Prost é campeão por um ponto e meio. A 18 voltas do fim, e com 29 segundos de avanço, Mansell quebra (culpa de uma fuga de óleo no sistema de travagem) e Lauda ultrapassa-o sem pestanejar. Como Prost está muuuuito longe, o austríaco conduz apenas para conservar o segundo lugar e sagrar-se tricampeão mundial, aos 35 anos, por meio ponto de diferença. A McLaren faz mais uma dobradinha e o pódio é também ocupado por um jovem irreverente, de seu nome Ayrton Senna. “Nunca esperava este resultado, estou bastante satisfeito. A ver se o melhoro para o ano.” E não é que o miúdo tem jeito para futurologia? Na segunda corrida de 1985, Senna não só vence o primeiro GP da sua vida (21 Abril, à frente de Prost) como ainda faz pole-position e melhor volta. Um hat-trick histórico.

De volta a esse 21 Outubro 1984, o que se passa no resto do país? Desportivamente falando, claro. O Sporting de Toshack empata 0-0 em Portimão, o Porto de Artur Jorge dá 5-0 ao Farense e o Vitória FC assusta o Benfica de Csernai na Luz (4-3). E no geral? Boa pergunta. Na Faculdade de Letras, o anfiteatro está cheio como um ovo para ouvir e beber da essência do argentino Jorge Luis Borges. “Mestre, o que é para si a verdade?” “Da verdade nada sabemos. Sobre a verdade, fazemos tão-só uma série de perguntas. Exibimos perplexidades a que chamamos filosofia. E é tudo…” Há quem insista: “Tudo?” Mesmo cego, Borges gira a cabeça na direcção da voz e repete: “Tudo. E é tudo.”

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A magia de Abu Dhabi

É tudo, sim. Assim ao longe, que é como quem diz do sofá para a televisão, Abu Dhabi é um sonho. Os aviões da Emirates não voam, passeiam-se elegantemente por cima do circuito. A montanha russa do parque de diversões da Ferrari não assusta, distrai elegantemente ao lado do circuito. Tudo é elegante nos EAU, até o céu azul e o sol brilhante. Que maravilha, que emoção, que sonho. É assim desde 2012. Nesse ano, grande prova de Vettel, segundo lugar de um magnífico Alonso e improvável vitória de Räikkönen. Dito assim, até parece um GP normal, só que não é. A começar pela qualificação. Vettel quebra a regra 6.6.2 do regulamento – os pilotos devem levar os carros às boxes após o fim do treino com o mínimo de um litro no depósito – e larga do 24.º e último lugar.
É uma montanha russa de emoções, isso sim. A Red Bull opta por fazer arrancar Vettel do pit lane e é assim que o alemão desenha uma das corridas mais inesquecíveis da sua vida. O seu serpentear é iningualável. Que o digam os atarantados Senna, Karthikeyan, Pic, Glock e Petrov. Lá na frente, Hamilton domina até desistir à 20.ª volta com problemas eléctricos. O inglês encosta à relva e ainda murmura um “vou tentar resolver o problema”. Em vão.

Kimi Räikkönen avança para o primeiro lugar. Segue-se um espectáculo muito próprio do finlandês, conhecido como IceMan Com Alonso a cinco segundos, Räikkönen recebe indicações via radio para estar atento. Resposta: “Deixem-me em paz, eu sei o que estou a fazer.” Mais tarde, quando o safety car entra pela segunda vez, a mesma voz alerta-o para não deixar os pneus arrefecer. Kimi reage a quente. “Yes, yes, yes, yes, estou a fazer tudo isso. Não é preciso lembrarem-me a cada segundo.” No pódio, quando lhe perguntam se é uma grande emoção voltar a ganhar (desde Bélgica-2009), responde com um seco: “Not much.” É bruto? O espumante, é sim senhor. Reikkönnen, esse, é o maior.

Passam-se quatro anos. Domingo, 27 Novembro 2016. É o último dia da Fórmula 1. Ou vai ou racha. Ou Rosberg ou Hamilton, agora escolha. A rivalidade é o prato do dia. Diz Hamilton, para quem a relação de amizade com Nico é agora tão-só profissional. “Tínhamos tanto em comum: gostávamos de pizza, de comer caixas de Kellog’s Frosties. Orgulho-me da sua condução e é um prazer tê-lo como colegas, mas distanciámo-nos ao longo da época.” Nico assente com a cabeça, sem verbalizar uma palavra que seja. Lá está a tal distância. É coisa do passado recente. Antes, os dois divertem-se na pista e nas boxes. A partir do momento em que a Mercedes troca os cinco mecânicos de Hamilton pelos de Rosberg, e vice-versa, a relação azeda.

O GP Abu Dhabi é liderado por Hamilton desde a qualificação. Na corrida propriamente dita, o inglês avança destemido para a 10.ª vitória em 21 corridas. No fim de contas, até ganha mais que Rosberg (9), só que é insuficiente. O título de campeão, seja em que desporto for, voa sempre para o mais regular e, nesse aspeto, Nico acumula mais segundos lugares (5-3) e só não acaba um GP, o de Espanha, em choque com Hamilton – que também não acaba o GP Malásia. Por isso mesmo, Rosberg soma 285 pontos, mais cinco que o inglês. É o primeiro título do alemão, filho de um outro campeão mundial de F1.

Tal pai, tal filho

Quem tem filhos tem cadilhos, quem não os tem cadilhos tem. Ah pois é, toma lá morangos. Um provérbio calha sempre bem, seja em que situação for. Em Portugal, é comum os filhos seguirem as pisadas dos pais. Morato é capitão do Sporting como o pai, Ricardo Sousa marca golos no Porto como o pai, Rui Águas leva o Benfica à final da Taça dos Campeões como o pai, Canário levanta uma Taça de Portugal como o pai. Os exemplos como os chapéus do Vasco Santana no “Canção de Lisboa”: muitos, aos montes. Lá fora, idem idem aspas aspas. Primeiro, a família Hill (Graham e Damon). Agora, a família Rosberg. Campeão mundial em 1982, num ano sui generis da F1 com 11 vencedores em 16 corridas, Keke só ganha uma vez, em Dijon (França), no mascarado GP Suíça. Pelo meio, mais cinco pódios e cinco GP’s sem sequer ver a bandeira de xadrez. Keke é, mesmo assim, o inacreditável campeão com cinco pontos de avanço sobre a dupla Didier Peroni (francês) e John Watson (inglês).

keke

Três anos depois, Keke é pai de Nico Erik Rosberg. O miúdo cresce dentro das boxes e aquilo das corridas está-lhe no sangue. Aos seis, já compete como gente grande nos karts. Aos 15, é companheiro de Hamilton. Aos 17, é campeão na Fórmula BMW ADAC (seja lá o que isso for). Aos 20, é campeão no GP2. Estamos em 2005 e a Williams oferece-lhe um cargo como piloto de testes. Menos de um ano depois, Nico já é um bico de obra. Na primeira corrida na F1, no GP Bahrain 2006, faz a melhor volta do circuito. Ainda hoje, com 20 anos e 258 dias, é o mais jovem de sempre a cometer tal proeza. Em 2009, crava a melhor volta no primeiro GP do ano, na Austrália, antes de assinar pela Mercedes, onde se junta ao compatriota Michael Schumacher. No segundo ano de Mercedes, a primeira vitória no GP China 2012. “As últimas 30 voltas duraram uma eternidade. Incrível, parecia que a corrida tinha seis horas. Não esperava ser tão veloz hoje, fiquei muito feliz com o ritmo que tivemos.”

Está dado o mote. A Mercedes contrata Lewis Hamilton e aí está de volta a dupla dos karts em 2000. A amizade é um posto. Os dois entretém o público e entretêm-se um ao outro. A camaradagem é evidente no GP Bahrein. Rosberg tem a pole position e aguenta a finta de Hamilton na curva 1 (aquela conhecida como Michael Schumacher). Lewis insiste e troca as voltas ao alemão antes do final da primeira volta, que tem Massa em terceiro (ele que arrancara em sétimo), Pérez e Bottas. Com dez voltas, o domínio Mercedes é mais que evidente – e não falamos só da dupla da frente (Rosberg e Hamilton); os cinco seguintes têm todos motores Mercedes. Uns mais rápidos que outros. Por isso, a equipa informa Hamilton que Rosberg está a economizar mais combustível que o inglês. Roger that. Hamilton entra nas boxes, mete pneus macios e acelera. Rosberg, com pneus médios, é ultrapassado e perde-o de vista. A meio da corrida, a diferença já é de sete segundos. E agora?

De repente, a 16 voltas do fim, Maldonado acerta em cheio no Sauber de Gutiérrez e o mexicano capota de forma espectacular. Os segundos que se seguem são ligeiramente assustadores porque Gutiérrez demora uns sustos para se mexer mas está tudo bem. Entra então um safety car e os carros aproximam-se uns dos outros. Com pneus mais rápidos, Rosberg aproveita e encosta em Hamilton. Aviso: a pressão do alemão sobre o inglês vai ser useira e vezeira até ao fim. Na primeira tentativa, Hamilton fecha a porta com a classe que se lhe reconhece. Muito bom. À segunda, Rosberg é bem sucedido e, acto contínuo, leva um nó de seguida. Ouch, até dói. Isto sim, é Fórmula 1, ao contrário do apregoado por Luca Montezemolo. Com o seu habitual aspecto de personagem de um filme de Federico Fellini e de olhar cravado nas jornalistas, o patrão da Ferrari reúne-se com Bernie Ecclestone e Jean Todt com o intuito de mudar algumas regras a meio do campeonato. Porquê? “Não faz sentido haver controlo de combustível. Os espectadores não querem ver um piloto a conduzir como um taxista.” Taxista ou não, Hamilton faz pela vida em nítida desvantagem (por conta dos pneus macios e, por isso, mais lentos) e segura a vitória num GP histórico, com Rosberg em segundo. Na escadas da subida ao pódio, os dois abraçam-se felizes da vida. É a magia da dobradinha.

Passam-se uns anos e a rivalidade cresce. Hamilton começa mal e Rosberg acumula quatro vitórias seguidas. Mais uma, na estreia da F1 no Azerbaijão (circuito citadino). E outras três (Bélgica, Itália e Singapura). No Japão, onde faz pole e controla da primeira à última volta, eis a nona vitória do ano e o confortável avanço de 33 pontos sobre Hamilton. O título é mais que dele. Será? Hamilton agarra-se à calculadora e ganha todos os quatro GP’s em falta (EUA, México, Brasil e EAU), com Rosberg sempre sempre sempre mas sempre em segundo lugar. A regularidade é um posto e Nico é o novo campeão mundial. A família Rosberg está de parabéns. Detalhe: os dois consagram-se a conduzir carros com o número 6 (tal como Piquet 1987 e Räikkonen 2007).