O guia do boneco branco e rechonchudo divulgou os restaurantes Estrela Michelin para 2018 e Tiago Bonito tem motivos para sorrir. O chef de 30 anos, que entrou no Largo do Paço, em Amarante, apenas em abril deste ano, conquistou a primeira estrela da sua carreira. Após a notícia, atendeu o telefone ao Observador bem-disposto e com riso fácil. Mas não se deixa deslumbrar. “Nunca quisemos dar um passo maior do que a perna.”
Há muitos fatores que influenciam a avaliação dos inspetores. A mudança do chef executivo pode fazer com que um restaurante perca a estrela de imediato, ou no momento em que são anunciados os premiados do ano. Por esse motivo, havia alguma expectativa sobre o Largo do Paço. Tiago Bonito entrou no restaurante a 17 de abril, para substituir André Silva, que ali passou vários anos, mas apenas dois como chef executivo. Passados 10 dias, mudou a carta. Há cerca de um mês, Tiago pôde finalmente apresentar o seu menu para o período outono/inverno, feito com o tempo e a calma que não teve na primavera. Hoje, realiza um sonho. É um chef Estrela Michelin.
Apenas 30 anos de idade, mas um longo percurso
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Tiago estudou na Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra, entre 2001 e 2004. Estagiou no restaurante Vila Joya (Algarve), no Alinea (Chicago, detentor de três estrelas Michelin), e no D.O.M (São Paulo, duas estrelas Michelin).
Em 2011, foi considerado Chefe Cozinheiro do Ano, no mesmo concurso em que se distinguiu com o Troféu de Inovação. Depois de ter passado pela cozinha do Tróia Design Hotel, transitou como chefe executivo para o Vilalara Thalassa Resort.
Daí foi para o Lisboeta, o restaurante da Pousada de Lisboa (atual Rib Beef & Wine), onde conquistou o prémio Revelação do Ano 2016 do guia português Boa Cama Boa Mesa.
O Largo do Paço, inserido no hotel de charme Casa da Calçada Relais & Chateaux, tem Estrela Michelin desde 2005. Foi o chefe de sala e diretor de comidas e bebidas, Adácio Ribeiro, que ali trabalha desde o início, que o escolheu como chef. No final de outubro, na apresentação aos jornalistas da carta outono/inverno, Tiago disse que o convite não lhe chegou com um ultimato. “Não há uma pressão [para obter a estrela], a única pressão que há é a de fazer um serviço de qualidade”, afirmou. “Trabalhamos substancialmente para o cliente, a consistência e a qualidade do serviço são o mais importante e o nosso foco.”
Os jornalistas insistem: nestes seis meses, a equipa trabalhou para a manutenção da estrela? “Trabalhamos sempre para que o nosso cliente não sentisse nenhuma oscilação de consistência de serviço. Temos clientes muito fiéis e é isso que queremos acima de tudo. O que vier é bom. Se não vier, vamos trabalhar da mesma forma. Não posso pensar muito nessa situação.” Por fim, lá admitiu que, sim, toda a gente tem objetivos na vida. “E eu também, não vou descartar essa hipótese, mas não vou sacrificar o restaurante por isso.”
Esta quarta-feira, admite ao Observador que cumpriu um sonho. Mas o discurso volta ao dever de todos os dias. “É a conciliação do trabalho que temos vindo a fazer ao longo deste tempo. Sempre foi uma preocupação, porque está no ADN desta unidade, mas não era um tudo ou nada. Nunca quisemos dar um passo maior do que a perna.”
A ligação intrínseca ao que o mar e a terra dão
Natural da aldeia de Carapinheira do Campo, concelho de Montemor-o-Velho, é com um tom apaixonado — e o sotaque da terra bem vincado — que fala sobre comida. “Qualquer prato sobre o qual me pergunte tem uma história. Eu faço um prato a pensar no cliente, mas todos têm uma viagem, uma memória de infância, ou até a história de um cliente, como já aconteceu”, disse em outubro aos jornalistas.
Há dois menus de degustação. Em “Caminhos” (sete pratos, 105€), Tiago leva os clientes aos locais por onde andou, através dos sabores. Ele, que nasceu e estudou na Região Centro, trabalhou vários anos no Algarve, subiu a Lisboa e, agora, conhece “os bons enchidos e o bom pão” do Norte.
O menu de degustação “Identidade” (10 pratos, 145€) é sobre a identidade da cozinha portuguesa, cruzando-a com a do restaurante e com a sua própria identidade, resume, destacando as diferentes gastronomias que coexistem dentro de um país tão pequeno. “Nasci a ver matar o leitão, o cabrito, a cultivar as batatas, a respeitar a sazonalidade.” Por isso mesmo, a seleção dos produtos de época e a ligação à terra — “chego ali a fevereiro e tiro a perdiz do menu, porque em março ela começa a pôr os ovos, temos de respeitar a natureza” — e ao mar — durante alguns minutos explica aos jornalistas qual é a melhor altura para pescar robalos — são a marca de ambos os menus.
“A minha comida é mar e fogo. É fumeiro, eucalipto, sabores do pinheiro, videira, que eu conheço”. Fala apaixonadamente. E, já que cada prato tem uma história, o chef abre o livro da sua vida. A família de Tiago faz a broa todos os sábados à noite em casa e mata os animais que come. A receita de leitão que está na carta, por exemplo, tem mais de 100 anos. “Era do meu avô, passou para a minha mãe, para mim e eu agora estou a passar a outros cozinheiros”.
Levou-a para todas as casas onde trabalhou, aperfeiçoando-a, para que não seja sempre igual. Não tem problema em explicar como a executa. “Deixo o leitão de um dia para o outro em salmoura, depois descansa, depois é marinado e cozido.” Em casa, seria no forno a lenha. No Largo do Paço cozinha-o colocando cascas de eucalipto em cima do grelhador e ainda coze a baixa temperatura durante 24 horas.
O novilho, de carne minhota, vem de “um senhor muito especial”, conta, sobre o homem que lhe vai mandando fotos do animal, para que o chef bote o olho e decida o momento certo.”São as vacas de lavoura”, mais velhas explica. Há uma razão para a preferência: memórias. Sempre elas. “O meu avô e a minha mãe lavravam a terra para as batatas e para o milho, não era com trator mas sim com duas vacas de trabalho.” Arrepia-se com a memória, recorda o cheiro da gordura a cair na brasa, da carne da vaca com idade entre os 10 e os 12 anos, que o avô punha a grelhar. “São carnes que precisam de ser maturadas para que a carne relaxe” e fique mais tenra, explica.
Aos domingos, Tiago Bonito gosta de ir pescar. A primeira coisa que sente quando chega à praia é o cheiro forte da maresia. O prato de consomé de tártaro de lavagante, com base de mousse de vieiras, percebes e caldo de lavagante, tenta recriar essa sensação através das louças e de uma gravação com o som das gaivotas e das ondas do mar. “Eu quando estou a cozinhar aquele prato sinto que estou no areal, a pisar areia molhada.” O esforço criativo de transmitir essa memória fá-lo feliz, e tem prazer em despertar outras sensações nos clientes “para que não seja só uma refeição com um prato bem confecionado. A técnica é muito importante, mas despertar sentimentos também.”
Uma das sobremesas, Leite de Cabra, junta no prato torta de abóbora, uma falsa noz, gel de groselhas, gelado de leite de cabra fumado e molho de beterraba. Quando Tiago a prova, sabe-lhe a infância. “Em minha casa, a partir desta altura e até janeiro ou fevereiro, a lareira é usada para muita coisa, como cozer o feijão ou o cozido à portuguesa, e para fazer o queijo.” A mãe de Tiago tinha cabras e ovelhas, tirava o leite e fazia o queijo em casa, que vinha com o aroma fumado, já que o leite estava a coalhar ao lado da lareira, a 36 graus.
“Somos como uma equipa de futebol. Eu sou o capitão, mas jogamos todos”
Em outubro, Adácio Ribeiro disse que tem sempre esperança que a Estrela chegue. “Já passaram por cá cinco chefs e todos tiveram estrela”, exclamou na altura. Tiago admite ao Observador que notou a presença dos inspetores do Guia Michelin logo em maio, apenas um mês depois de ter entrado. Naquela altura, tinha várias preocupações em mente. “Com a minha chegada tivemos de organizar equipas. Muita coisa mudou: a equipa, o alinhamento, a cozinha em si, o estilo de autor — uma cozinha mais virada para o mar.”
A preocupação desde o início foi a consistência, para que o cliente não notasse oscilações. E, para Tiago, os inspetores são clientes como outros quaisquer. “Alguns identificaram-se e falamos. Outros se calhar não. Nunca temos a certeza, por isso o melhor é pensar que todo o cliente é cliente e respeitar de forma igual.”
No balanço destes sete meses, afirma que tem “crescido muito profissionalmente” e que nada se consegue na vida sem trabalho, sem muita pesquisa, aprendizagem. De Amarante ainda pouco conhece. Ao descrever a sua rotina diária, percebe-se porquê: “Às duas da manhã fecho a porta, apago a luz da cozinha e ainda ontem saí daqui com vontade de ficar.” Pelas 08h30 já lá está novamente. Todos os dias. A paixão pela cozinha, pela descoberta de novas combinações de cores e sabores, é quase palpável quando o ouvimos falar sobre a profissão que desempenha.
A estrela ficará para sempre colada ao seu nome: Tiago Bonito, uma Estrela Michelin aos 30 anos. Mas das duas vezes que falámos com ele, raramente o ouvimos falar na primeira pessoa. “Ainda hoje falei com a equipa: somos 11 pessoas na cozinha, somos como uma equipa de futebol e eu sou um capitão. Mas jogamos todos e vamos trabalhar sempre de igual forma. Hoje é mais um dia.”