A que extremos poderá ir uma pessoa da geração da fama instantânea nas redes sociais, do advento dos influencers e do narcisismo digital, para se tornar “conhecida”, a apontarem na rua, pedirem-lhe autógrafos e oferecerem-lhe contratos publicitários? De acordo com “Farta de Mim Mesma”, a sátira negra e “gory” do norueguês Kristoffer Borgli, aos piores e mais perigosos extremos. Signe (Kristine Kujath Thorp), a protagonista do filme, é uma dessas pessoas, uma anónima empregada de café em Oslo com inveja do seu namorado, Thomas (Eirik Saerher) um artista egocêntrico, sem pinga de talento e ladrão de cadeiras e poltronas, com as quais faz as suas “obras”, e que está a começar a singrar no meio.

[Veja o “trailer” de “Farta de Mim Mesma”:]

Apesar de não ter quaisquer qualidades reconhecíveis ou dotes excecionais, Signe tem uma grande ideia de si mesma e até diz aos amigos que acha que devia ter um “podcast”. Um dia, uma mulher é mordida por um cão à porta do café em que trabalha e ela é a única pessoa que a ajuda, beneficiando por isso de alguns minutos de atenção e não parando depois de sarrazinar o namorado e os amigos com a história. Tenta a seguir ser ela mordida por um cão, só que o animal é manso e simpático, e tudo o que consegue é ser insultada pelo dono. Mas não desiste da sua obsessão doentia de ser o centro das atenções. Mesmo que isso signifique fingir que tem uma alergia a frutos secos num jantar em que o namorado é a vedeta.

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[Veja uma entrevista com Kristine Kujath Thorp:]

Signe lê então uma notícia sobre um medicamento russo que foi retirado do mercado por causar terríveis alergias e lesões cutâneas a quem o tomar, podendo mesmo levar ao desfiguramento. Consegue arranjá-lo através de um amigo “dealer”, e começa a ingeri-lo como se fossem tremoços. As consequências estão longe de ser bonitas. Signe passa a parecer o cruzamento de alguém que foi vítima de uma cirurgia plástica horrivelmente falhada ao rosto, e da vingança do Abominável Dr.Phibes de Vincent Price no filme homónimo. Mas ela está decidida a tirar todo o sumo de notoriedade e todo o proveito financeiro que puder desta sua arrepiante e dolorosa condição.

[Veja uma sequência do filme:]

“Farta de Mim Mesma” torna-se então cada vez mais incomodamente gráfico, ao mesmo tempo que uma totalmente irresponsável Signe fantasia sobre a sua situação de vítima “famosa” (chega a imaginar o seu próprio funeral, de tal forma concorrido por admiradores, que é preciso mandar gente embora). Kristoffer Borgli aproveita para alfinetar a indústria da moda e a hipocrisia das suas pretensões “inclusivas” (a agora monstruosa Signe, representada por uma agente ridiculamente woke, é contratada por uma marca de roupa, juntamente com uma modelo sem um braço, para fazer uma produção — com consequências catastróficas).

Por esta altura, o filme já concretizou, e bem, as suas intenções, apesar de alguma falta de ritmo, e começa a chover no molhado ainda antes da protagonista ter um lampejo de bom senso e perceber a enormidade daquilo que fez. Mas Borgli acaba-o na altura certa, não cedendo a um final “confortável” quer para a desgraçada Signe, quer para o espectador. Haverá que possa achar que “Farta de Mim Mesma” vai longe demais na sua feroz punção da cultura “Olhem para mim! Quero ser famoso!”, embora a sátira inclua sempre algum excesso e uma medida de caricatura. Mesmo que isso implique – e no caso de Signe, literalmente – perder a face.